Entrevista da Semana | MINISTRO GILMAR MENDES
Ministro do STF não descarta que Lava Jato possa ter atuado a serviço da CIA
“Eu imaginava que seriam teorias conspiratórias, mas hoje eu já não sei se são”, afirma Gilmar Mendes sobre suposta participação da Central de Inteligência Americana nas ações da “República de Curitiba”
Por Humberto Azevedo e João Negrão
O ministro Gilmar Mendes afirmou, com exclusividade para o portal RDMNews, que aquilo que ele supunha que seriam apenas teorias conspiratórias das ligações realizadas pela operação Lava Jato com organismos e empresas dos Estados Unidos da América (EUA), “hoje eu já não sei se são” apenas teorias conspiratórias.
A frase foi dita quando contava sobre a visita do senador Sérgio Moro (União Brasil-PR) – ex-juiz federal responsável pela Lava Jato e ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública do governo Bolsonaro, nas vésperas do julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que o livrou da cassação pelo uso de recursos do fundo eleitoral para realizar pagamentos particulares.
Gilmar Mendes passou a colocar o ex-juiz como suspeito de ter sido um agente da “Central Intelligence Agency” (CIA) do governo dos Estados Unidos da América (EUA), ou dos interesses de empresas norte-americanas, após algumas diversas informações coincidirem com a contratação dele por uma das maiores empresas daquele país, a Alvarez & Marsal, logo após a saída dele do governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL) em abril de 2020.
“Aí tem teorias conspiratórias, que eu imaginava que seria teoria conspiratória, mas hoje eu já não sei se são. Talvez sejam muito factíveis. (…) Esse caso é de corrupção?”, perguntou o ministro da Suprema Corte ao senador paranaense quando do encontro.
Na entrevista, o ministro decano da Suprema Corte fez ainda diversas outras análises, avaliações e ponderações ao histórico da operação Lava Jato, assim como falou também do crescimento da extrema-direita na Europa, uma possível volta ao poder nos Estados Unidos do ex-presidente Donald Trump, a estratégia adotada pelo presidente da França, Emmanuel Macron, de antecipar as eleições parlamentares na tentativa de evitar que o partido antimigração de Marie Le Pen chegue ao governo daquele país.
“A minha própria visão é de que a União Europeia é uma conquista tão importante, que vai subsistir”
Além de destacar a possibilidade de o Brasil adotar o semipresidencialismo para resolver os impasses e as diversas crises políticas com celeridade. “Eu tenho a impressão de que em algum momento nós vamos ter que discutir essa questão do semipresidencialismo adaptada a nossa realidade”, comentou.
Gilmar Mendes comentou, ainda, sobre o “Brexit”, a saída do Reino Unido da União Europeia e suas consequências negativas para a economia não apenas do bloco comum europeu, mas sobretudo para os países que integram a Grã-Bretanha (Escócia, Inglaterra, Irlanda do Norte e País de Gales).
Ao abordar a operação Lava Jato, o ministro decano da Suprema Corte lamentou que o país assistiu por parte daquela operação “práticas totalitárias” e fascistas. Parafraseando o sociólogo Luiz Werneck Vianna, falecido em 2018, Gilmar Mendes chamou a operação Lava Jato de “tenentismo togado”. Além de considerar que aquela operação pretendia romper com o Estado civilizatório e com o Estado Democrático de Direito ao citar o poema “No Caminho, com Maiakóvski”, escrito pelo jornalista e escritor Eduardo Alves da Costa, de Niterói (RJ), nos anos 60.
O poema “No Caminho, com Maiakóvski” conta como surgem movimentos totalitários e fascistas, que no início contam com amplo apoio das sociedades. “Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada”.
Abaixo segue a íntegra da entrevista com o ministro Gilmar Mendes concedida com exclusividade ao repórter Humberto Azevedo, plantonista do portal RDMNews na Praça dos Três Poderes, e ao diretor de Redação do Grupo Rede de Mídia (RDM), jornalista João Orozimbo Negrão.
RDMNews: Como o senhor avalia o crescimento da extrema-direita, da direita radical e ou ultradireita no mundo? As últimas eleições para o parlamento da União Europeia apontam para isso.
“Acho que o discurso mais radical de desunião, de separatismo, às vezes, até pode entusiasmar um grupo de eleitores, mas ao fim e ao cabo, se verifica que as vantagens são maiores que as desvantagens”
Gilmar Mendes: Nós estamos vivendo um momento muito singular, muito peculiar. Eu acho que a questão da França é uma consequência das eleições da União Europeia e nós temos de esperar vários semanários, importantes jornais de análise que estão fazendo a avaliação do que será a nova Europa com esta composição, né? A discussão sobre [a continuidade da presidência do bloco europeu] a Ursula von der Leyen, da [atuação da primeira-ministra da Itália, Giorgia] Meloni no parlamento europeu. E essa é uma pergunta relevante, como isso vai se dar, se vão optar por um modelo mais moderado, ou eventualmente algum tipo de radicalização. Mas o pano de fundo, obviamente, é o crescimento desta chamada direita, ou até mesmo extrema-direita, ou ultradireita. E isso tem acontecido, alguns governos funcionam assim, né? Na Hungria, o [Victor] Orban e tem aparecido isso também pelos vários países europeus. Na Áustria já tinha ocorrido isso. Então, é uma situação nova e eu acho até neste sentido que o governo da primeira-ministra [da Itália, Giorgia] Meloni é visto com boa surpresa porque ela tem optado por uma condução moderada. Então, eu acho que a gente vai ter que fazer essa avaliação e, certamente, isso vai performar independentemente de rumos outros em temas específicos. [Como as] pautas de costumes, temas ligados à imigração – que é hoje um tema que marca as eleições europeias, tanto a do bloco, como as domésticas dos países europeus, né? Então, é um tema que certamente vai traçar os próximos movimentos da chamada União Europeia. A minha própria visão é de que a União Europeia é uma conquista tão importante, que vai subsistir. Eu acho que o discurso mais radical de desunião, de separatismo, às vezes, até pode entusiasmar um grupo de eleitores, mas ao fim e ao cabo, se verifica que as vantagens são maiores que as desvantagens.
RDMNews: O senhor não acha que esse caminho pode desembocar no que aconteceu nas décadas de 20, 30, do século passado com a ascensão de regimes fascistas e depois o nazismo?
Gilmar Mendes: Não sei se chega a isso. Porque hoje temos instituições mais fortes, embora as instituições internacionais tenham debilidade. A União Europeia não chega a ser uma federação, mas também vai para além de um simples tratado. Ela vai para além disso. A própria desagregação, o separatismo da Grã-Bretanha aparentemente, não faz muito tempo, eu estive em Londres, o sentimento geral é que isso não foi positivo. Trouxe problemas e, agora, eles estão tentando repactuar tratados de bitributação e coisas que tudo de alguma forma a Inglaterra já tinha direito. Se você sai de um bloco maior, e, agora, fica procurando, então, se não reentrar, mas pelo menos restabelecer vínculos fluidos, diretos, que foram rompidos. [Como] fronteiras, o comércio, etc. A questão da moeda, libra [esterlina] não, porque eles tinham feito a ressalva [quando entraram no bloco]. Mas o conjunto de negócios, imigrações. Londres é uma capital financeira, né? Um pouco capital financeira mundial também, mas uma capital financeira da Europa e, agora, passa a ter restrições neste contexto. Então, me parece que até nesse exemplo, do Brexit, acaba tendo repercussão em corações e mentes de outros países e grupos que quisessem efetivamente fazer a separação. Então, esse é um quadro.
RDMNews: E as conexões da nossa extrema-direita com a ultradireita europeia podem nos acometer? Seja também pelas ligações do ex-presidente Jair Bolsonaro ao ex-presidente dos EUA, Donald Trump, que lá comanda uma direita igualmente radical, e que pode voltar ao poder lá agora no final do ano? O senhor acredita que, se Trump fosse o presidente norte-americano no lugar de Joe Biden, a tentativa de golpe de Estado ocorrido no dia 8 de janeiro de 2023 teria tido sucesso?
Gilmar Mendes: Aplicando-se ao Brasil, tanto quanto eu vejo, na verdade, se a gente for observar e fizer uma linha de corte, talvez ela caia no governo de Dilma Rousseff. No primeiro governo, ainda se beneficia da boa governança conquistada, das boas condições herdadas do governo Lula, tanto é que ela ganha as eleições e as condições internacionais e nacionais tinham mudado. E, obviamente, que as respostas que ela foi encontrando, sobretudo, um certo dirigismo foi enfraquecendo a economia. Muito provavelmente ela ganha as eleições de 2014 um pouco já dentro de limites e, tanto é, que ela anuncia logo em seguida uma mudança no driver econômico. Traz o Joaquim Levi, o que causou uma grande impopularidade desde sempre. Porque ela anunciava que o técnico seria um defensor do jogo ofensivo e depois ela adota uma retranca. Então, obviamente que isto tem efeitos e coincide com a queda de popularidade e tudo mais. Já tínhamos tido antes, em 2013, aqueles episódios todos que vocês se lembram dos vinte centavos e, portanto, temos esta situação. E aí, obviamente, na sequência vem a Lava Jato, que coloca o sistema político e, principalmente, o PT e aliados, mas depois o sistema político como um todo, no chão. E isto, obviamente, viabiliza como aconteceu em todos os países candidaturas escoteiras. Ninguém jamais imaginaria que fosse a do Bolsonaro, ou alguns imaginaram, mas isso não era o consenso. Um deputado que não tinha, em princípio, nenhuma relevância parlamentar, mas que passa a galvanizar [apoio das massas].
“Vocês viram repórteres da Globo que se serviam de assessor do grupo da Lava Jato e tudo isso. Aqueles que ousavam criticar, eu comecei a criticar pelo alongamento das prisões, o tempo de prisão e o uso disto para se obter delação”
RDMNews: Agora, na sua opinião, por que isso ocorreu? Isso pegou todos de surpresa? Não se percebeu que estava se formando uma aliança entre os núcleos das bancadas da bala (formada por policiais militares da linha dura), da bíblia (por evangélicos, em sua maioria, com valores fundamentalistas) e do boi (de alguns segmentos dos empresários da agropecuária) com até mesmo uma orquestração de parte das Forças Armadas, que poderia resultar no que resultou?
Gilmar Mendes: Talvez, não. Isso por um desses fenômenos, ele [Bolsonaro] galvaniza essa ideia da antipolítica. Embora fosse um vivente da política. Um dependente da política. Tanto é que, na verdade, os Bolsonaros estabelecem um tipo de holding em que eles colocam um filho em São Paulo, outro no Rio, outro na Câmara [Municipal] e, portanto, ninguém mais vinculado à política e dependente da política, até mesmo desta vertente – vamos chamar assim – muito corporativista. Usavam o financiamento, os pagamentos, vantagens advindas – vantagens normais até – de verbas, salários, distribuição de cargos, auxílio combustível para a empresa política familiar. Então, de uma certa forma, foi um desses fenômenos que na política vale mais a versão do que o fato. Ele passa a galvanizar, claro que com mensagens, que ele já defendia, deve-se fazer justiça, contra regras do meio ambiente, por exemplo, ou em prol dos costumes, defesa de princípios e costumes tal o ataque ao casamento homossexual, entre outras questões. Em suma, ele consegue galvanizar grupamentos os mais diversos. Ao pensar em evangélicos, na turma do agro, que tem preocupações que vamos dizer que não são ilegítimas à irritação com regras do meio ambiente, Conama, às vezes insegurança jurídica decorrente disso – o que não significa que pessoas do agro sejam contrárias às regras de meio ambiente, mas havia muitas discussões com relação às multas exageradas do Ibama, das autoridades do meio ambiente e um certo radicalismo aqui. A questão das terras indígenas em alguns de nossos rincões. Em suma, ele consegue fazer deste agregado, ao lado também de uma pessoa que não podemos esquecer, que é o anúncio de uma política mais liberal – o que soa como música para setores da economia que não querem apostar e/ou estão cansados do intervencionismo estatal. E a Dilma, de alguma forma, deixou esse rescaldo. Essa ideia de que o dirigismo estatal não tinha sido bom. Nós forçamos a redução, por exemplo, do preço de energia e em seguida veio um estouro, né? Então, me parece que ele consegue galvanizar esse tipo de apoio de vários segmentos aí: evangélicos, agro, pessoas ligadas à segurança.
RDMNews: E por que não o Aécio Neves?
Gilmar Mendes: É uma boa pergunta se ficarmos em 2014. Aécio perde a eleição para si mesmo, eu acho, ao perder em Minas. Aí eu não sei se teve um pouco de descuido, um pouco de soberba, mas as eleições foram definidas em Minas. Quando o PT se estrutura e ganha a eleição em Minas e ganha no primeiro turno a eleição para governador, de alguma forma resolve esta parada. Minas, como todos sabem, é um estado muito complexo. Tanto que dizem que quem ganha em Minas, ganha no Brasil. Em princípio, não era de se esperar esta derrota, sobretudo, a derrota [em Minas] no primeiro turno. O que fez com que o candidato eleito em Minas já se ‘entronizasse’ no cargo e disputasse o apoio na eleição em segundo turno desta forma. Depois, veio o impeachment e tal e aí um dado importante que a gente não pode esquecer, que é um ator importante, que é a Lava Jato. A Lava Jato leva de roldão a base do governo toda da época, alguns pensaram até em se separar da Dilma. É curioso, a Lava Jato se estrutura com base na legislação aprovada no governo Dilma. Por exemplo, a delação premiada.
RDMNews: O projeto que era para enfrentar o crime organizado?
“Todos que eram tidos como adversários, nesses dias alguém me falou que eles [da Lava Jato] me chamavam de “Gilmau” lá nesse grupo que veio a público com a Vaza Jato e tal”
Gilmar Mendes: Isso. E Dilma dava apoio a isso. E Dilma certamente tentando se separar de Lula neste contexto político mais geral. Mas aí a Lava Jato atropela todas as forças políticas. Não só àquelas governistas do governo federal, mas também outras. Aí vêm discussões, depoimentos, delações, a questão do caixa 2 que todos acabavam recebendo. Não era um clube de anjos isso tudo e resulta praticamente que todo o sistema político é atingido. O próprio [Geraldo] Alckmin, cuja vida é ilibada e ninguém nega, que vai ser candidato lá na frente contra o Bolsonaro [em 2018] também é atingido por denúncia. Porque todo mundo que fez campanha de alguma forma terá tido alguma forma de vulnerabilidade, não própria do que doou ou uma outra forma de arrecadação.
RDMNEWS: Fraudes na contabilidade?
Gilmar Mendes: Isso e uma série de problemas. E isso, curiosamente, faz com que candidatos como Aécio, como o próprio [Michel] Temer – vocês viram – sofreu todos aqueles ataques e isso é uma questão relevante, porque toda essa judicialização da política levou até mesmo o impedimento do governo dele [de promover] reformas importantes que também poderiam ter mudado o destino. Poderia ser o Temer o candidato, ou um candidato que ele viesse a apoiar, né? Poderia ser um candidato forte, mas isso não resulta, porque o sistema político como um todo e uma das imputações era o “quadrilhão do MDB”.
RDMNews: Ele, ao lado do Geddel Vieira Lima – ex-líder do PMDB na Câmara…
Gilmar Mendes: Isso. Quadrilhão do PP.
“Então, passavam a ser vítimas de ataques, de investigações da Receita Federal, foram investigar a minha mulher, até a minha mãe, que já tinha morrido, aparece numa investigação da Receita”
RDMNews: Malas de dinheiro…
Gilmar Mendes: Malas de dinheiro.
RDMNews: E uma das malas envolvendo o Aécio….
Gilmar Mendes: Isso. Ele é atingido. Vem esta eleição em que um azarão ganha e com essa mensagem para vetores dos mais, que já referimos aqui, além dos militares. Eu acho que até os militares interpretaram a vitória do Bolsonaro, que inicialmente não era bem-visto pelo establishment militar, mas interpretaram como sendo um regresso deles ao poder pela via eleitoral, agora. E eles passam a ter um papel relevante nesse contexto na formação do governo, burocracia e tudo isso que nós vimos. Então, me parece que de alguma forma um ator importante aqui é a Lava Jato e o vínculo que ela estabeleceu com o próprio Bolsonaro, que é notório. Chama o Moro para ser ministro da Justiça, muito provavelmente repassaram informações e depois o Bolsonaro os viu também com desconfiança.
RDMNews: A delação do ex-ministro da Fazenda dos dois primeiros governos Lula, Antonio Palocci, também contribuiu?
“Isto [atuação da Lava Jato] é uma prática totalitária, quer dizer, estivemos muito próximo de um modelo ditatorial feito por juízes e promotores. Algo que perdeu completamente a mão”
Gilmar Mendes: Eu acho, que, um conjunto. Àquela altura, teve o vazamento da delação às vésperas da eleição, certamente contribuiu para afetar o PT. E o PT, obviamente, se provou numa circunstância muito pesada, Lula preso e tal, provou um partido muito resiliente, uma força política muito resiliente. Obrigar uma eleição daquela ir ao segundo turno. Tanto é que o Bolsonaro ficava repetindo que a eleição fora para o segundo turno por conta de fraude. Fraude nenhuma! Simplesmente porque, como a gente viu, o PT tem núcleos básicos aí nas comunidades mais pobres e tal, no Nordeste tem marcos. Nós vimos [isso aí] nas últimas eleições [em 2022], 2018, o mesmo.
RDMNews: A ação da Lava Jato, ao longo do tempo se provou, tinha também como meta atingir as instâncias máximas do Poder Judiciário. Como o senhor viu isso? Podemos supor que a Lava Jato era uma expressão de uma revolução fundamentalista?
Gilmar Mendes: Eu acho que eles começam, talvez, com uma visão mais modesta, ou localizada. Mas todos os episódios que permitiram essa ascensão surgem: debilidade do sistema político, que eles vão verificando; o grande apoio que eles galvanizam na sociedade como um todo a partir do apoio da mídia e tal; o combate à corrupção tinha a ver também com uma certa frustração geral que havia na classe média com o não desenvolvimento. Nós saímos para um desenvolvimento de 5%, 6% para decréscimo; recessão e tal. Então, logicamente, começam esses desvios. E o movimento cresceu, tanto que vocês têm símbolo. Curitiba começa a dizer quais são as medidas de combate à corrupção, as tais dez medidas e coisas do tipo. Assume também a competência enorme nesse contexto. Obviamente, o Judiciário, nós passamos a ter enormes dificuldades em função de todo esse quadro aí. Nesse quadro ela [a Lava Jato] passa a ser uma entidade, que todo mundo dizia ‘essa decisão não pode ser tomada assim porque contraria a Lava Jato’. O próprio Supremo Tribunal Federal é engolfado nessa onda e se passa a criticar [a conduta e as ações dos ministros da Suprema Corte]. O tribunal [STF] tinha tomado uma decisão, que não foi devido à Lava Jato, mas a uma revisão-geral que foi a segunda instância. A ideia de permitir a execução penal com o julgado na segunda instância e eles passaram a usar isso, em Curitiba, porque prendiam em primeiro grau, deixavam a pessoa presa provisoriamente, depois o [Tribunal Regional Federal do] Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, confirmava e isto já era decisão definitiva. E qualquer tentativa de revisão nos tribunais superiores era considerada como algo e com algum vilipêndio. Então, nós passávamos a viver …
RDMNews: …que estava defendendo a corrupção, tal, essas coisas…
Gilmar Mendes: Isto. Vocês viram repórteres da [TV] Globo que se serviam de assessor do grupo da Lava Jato e tudo isso. Aqueles que ousavam criticar, eu comecei a criticar pelo alongamento das prisões [temporárias], o tempo de prisão e o uso disto para se obter delação.
“O [sociólogo, já falecido, Luiz] Werneck [Vianna] que falou lá atrás do tenentismo de toga. Eu acho que de alguma forma a Lava Jato realiza isso. A república do Galeão, a república de Curitiba…”
RDMNews: Tortura, ministro? Não clássica, mas psicológica?
Gilmar Mendes: É claro, evidente. Sim. Porque o pouco que sabemos já é um dado importante, mas certamente nas conversas nas prisões diziam ‘delate que você ficará livre’. E isso aparece depois com aquelas informações da chamada Vaza Jato, operação Spoofing. Então, a gente começa a viver um pouco esse quadro. E todos que eram tidos como adversários, nesses dias alguém me falou que eles [da Lava Jato] me chamavam de “Gilmau” lá nesse grupo que veio a público com a Vaza Jato e tal. Então, passavam a ser vítimas de ataques, de investigações da Receita Federal, foram investigar a minha mulher, até a minha mãe, que já tinha morrido, aparece numa investigação da Receita. Isto é uma prática totalitária, quer dizer, estivemos muito próximo de um modelo ditatorial feito por juízes e promotores. Algo que perdeu completamente a mão. O [sociólogo, já falecido, Luiz] Werneck [Vianna] que falou lá atrás do tenentismo de toga. Eu acho que de alguma forma a Lava Jato realiza isso. A república do Galeão, a república de Curitiba…
RDMNews: Mas a Lava Jato, que foi muito popular no seu nascedouro, começa a perder força e popularidade ao longo do seu processo, mas é a partir da separação de Bolsonaro e Sérgio Moro, que rompem em 2020, naquele episódio que o então presidente demitiu o superintendente da PF no Rio de Janeiro indicado pelo ex-juiz com a justificativa de que se fosse necessário demitir o ministro da Justiça para não “f… a sua família”, também demitiria. Mas a Lava Jato não foi popular porque há anseio por parte da sociedade brasileira de que a Justiça seja mais célere, não? Por exemplo, o Brasil possui mais de um milhão de presos, destes, apenas 70 mil foram julgados e mais de 700 mil pessoas aguardam julgamento na cadeia. O ex-senador Antônio Carlos Magalhães (ACM) começou a perder poder quando encampou a ideia de o país fazer uma reforma do Judiciário, ainda no governo Fernando Henrique. A falta de transparência do Judiciário também permitiu que surgisse um movimento como a Lava Jato, não?
Gilmar Mendes: Sim, certamente. Há muitos problemas no funcionamento do sistema judicial, a começar pela judicialização da vida política. Porque, diferentemente do que acontece mundo afora, nós temos uma brutal judicialização. Neste momento em que nós estamos falando, nós temos 80 milhões de processos em tramitação no Brasil.
“Há muitos problemas no funcionamento do sistema judicial, a começar pela judicialização da vida política. Por que, diferentemente do que acontece mundo afora, nós temos uma brutal judicialização”
RDMNews: 80 milhões de ações para serem analisadas?
Gilmar Mendes: Isso para 18 mil juízes. E estamos falando na questão…
RDMNews: Só das questões de legislações?
Gilmar Mendes: Em geral. Desde o remédio que o sujeito pede na saúde. É uma coisa estúpida. É um número que não existe em lugar nenhum do mundo. É claro que tem setores mais ou menos sobrecarregados. Mas na esfera criminal, então, vamos ter sobrecargas. Às vezes um crime típico e que revolta a população, [como] o homicídio, que gera tanta insegurança jurídica, muitas vezes fica ameaçado de prescrever neste período porque se passam mais de 20 anos e não se julga o caso, ou não se leva alguém a júri. Então, tem muitos problemas. Já melhoramos muito, já conhecemos os números e conseguimos acompanhar. O CNJ [Conselho Nacional de Justiça] funciona desde 2005, 2006, e tem tido um certo padrão, inclusive, de fiscalização, mas isso é uma tarefa hercúlea. Porque de um lado nós temos que trabalhar na desjudicialização, na simplificação da vida, para reduzir esta sobrecarga e, ao mesmo tempo, temos que ser mais céleres, de fato. Quando vamos condenar, já prescreveu, então, é óbvio que isso alimenta defensores de medidas heterodoxas. Ah! Vamos tornar o crime imprescritível, corrupção, vamos fazê-la imprescritível e coisas desse tipo. A gente tem que se preocupar. O Judiciário é, muitas vezes, causa e alimenta esse populismo.
RDMNews: Qual é a saída, então, para desafogar o Judiciário?
Gilmar Mendes: Não há saídas miríficas. Eu acho que são reformas graduais.
RDMNews: Precisamos de uma reforma do Judiciário?
Gilmar Mendes: Não necessariamente.
RDMNews: A Constituição que temos já resolve?
Gilmar Mendes: Já, já resolve. Claro que nesses números aí, estratosféricos, que eu dei, tem o exemplo de que nós temos 30% destes 80 milhões de processos de execução fiscal. Então, nós temos que modificar o não pagamento da dívida fiscal e execução fiscal. Então, nós temos que resolver isso. Com isso, nós já diminuiremos a sobrecarga e assim por diante.
“Neste momento em que nós estamos falando, nós temos 80 milhões de processos em tramitação no Brasil. Isso para 18 mil juízes”
RDMNews: Voltando à questão da Lava Jato, qual foi o estrago que esses personagens que conduziram a operação fizeram para a política e para a sociedade brasileira?
Gilmar Mendes: Eu acho, como disse anteriormente, que eles aproveitaram de uma debilidade do sistema funcional naquele momento. Eu acho que faltou ao sistema institucional a visão para que aquilo caminhava para isso, quer dizer, vieram e pegaram o Lula e eu não tenho nada com isso. A história do “‘No caminho, com Maiakóvski” e tal, que na verdade eles levaram todo o sistema. E eram, de uma certa forma, figuras simplórias, se a gente for hoje avaliar…
RDMNews: Mas que foram elevadas a superstares e colocados em pedestais?
Gilmar Mendes: Isso, isso. E tal, grande popularidade. Há um personagem recôndito, que a gente não pode esquecer, o [Rodrigo] Janot, que detona o governo Temer e impede, inclusive, o governo de fazer uma transição mais suave, passando…
RDMNews: Que é indicado pela Dilma, detona a Dilma, e implode a gestão sucessora?
Gilmar Mendes: Isso. Então, é tudo muito complexo e enveredado por estas nossas ambiguidades. Veja que Janot vem na tal famosa lista tríplice, que é uma invenção do PT. É uma invenção dos procuradores, e uma invenção do PT.
RDMNews: O senhor é contra a lista tríplice?
Gilmar Mendes: Total! A Constituição não prevê nada, não faz nenhum sentido e veja que, então, a gente vai viver esse momento e quase estávamos sendo levados para o cadafalso, para a “debacle”, por esses personagens chinfrins. E uma coisa que ficou muito marcada e, marcada em mim, é que essa gente, os nossos combatentes de corrupção, gostavam muito de dinheiro. Tanto é que eles se deram o direito de se remunerar.
RDMNews: E a história da fundação que foi criada por eles da Lava Jato para gerir os recursos resgatados da Petrobras, ao invés de eles devolverem para o Estado?
Gilmar Mendes: A fundação Dallagnol… e tem uma outra fundação aqui no Distrito Federal descoberta na chamada operação Greenfield, era do mesmo grupo ligado à Transparência Internacional e tal.
“Eu tenho a impressão de que em algum momento nós vamos ter que discutir essa questão do semipresidencialismo adaptada a nossa realidade. Nós vemos que o sistema é complexo”
RDMNews: Fora o uso excessivo de diárias…
Gilmar Mendes: Isso que é a parte da quirera. Na verdade, eles viram aquilo e como lidavam com bilhões, eles viram aquilo com uma chance de… Essa fundação Dallagnol começa com R$ 2,5 bilhões.
RDMNews: Ao invés de devolver para a União, eles queriam se apossar dos recursos?
Gilmar Mendes: Isso. Para vocês verem, é como se eles fossem, veja, pensavam eles “nós vamos produzindo essa devolução e nós temos que…” Como se fossem advogados que tivessem direitos a honorários, que eles mesmo calculavam e imputavam. Então, isso é um dado bastante curioso. E outras coisas que hoje são bastante conhecidas. Isso eu falei com o Moro até quando ele veio aqui. As empresas… e aí tem teorias conspiratórias, que eu imaginava que seria teoria conspiratória, mas hoje eu já não sei se são. Talvez sejam muito factíveis. A prestação de serviço, o distrato norte-americano, depois de tirar as empresas brasileiras do cenário internacional, construtoras e outras e tal. Ele quebra as empresas com estas medidas todas e entrega a administração à Alvarez & Marsal…
RDMNews: Que depois ele, Sérgio Moro, vira consultor?
Gilmar Mendes: Que é uma empresa americana que passa a administrar as empresas brasileiras e depois ele encontra emprego na Alvarez & Marsal, nos Estados Unidos. Veja, eu até perguntei: “Moro, como o juiz Moro julgaria o papel agora do advogado Moro? Esse caso é de corrupção?”. Então, vejam vocês, e aí o que isso fala também? Fala de uma falha do sistema judicial como um todo. Nós não tivemos o Conselho da Justiça Federal [apurando isso], não tivemos o CNJ, nós não tivemos a corregedoria do TRF-4 funcionando nesse caso.
RDMNews: Deixaram passar, não é?
Gilmar Mendes: Isso de alguma forma foi passando, né?
RDMNews: Está em discussão no Senado Federal o PLP 112, de 2021, chamado de novo Código Eleitoral brasileiro, que entre várias mudanças propostas, como o fim da reeleição, consta a mudança do regime presidencialista para o parlamentarismo, ou semipresidencialismo. O senhor ainda defende a adoção deste modelo de semipresidencialismo como a chave para o Brasil resolver suas crises políticas de maneira mais célere? Essa pauta deve ser retomada?
Gilmar Mendes: Acho que sim. É claro que isso tem que produzir um consenso político, inclusive, de reformas políticas. Algumas que nós estamos fazendo o enxugamento de partidos, reduzindo o número de partidos, a cláusula de barreira, fusão partidária, as coligações [apenas para partidos que estejam numa mesma federação partidária indissolúvel por quatro anos], né? Que estão se fazendo. Então, acho que estamos caminhando para isso. E hoje a gente tem uma realidade, que às vezes é preocupante, mas que também pode ser o indício de algo que é positivo. As emendas parlamentares. A participação do parlamento nisso, que tem problemas sérios e a gente deveria, talvez, olhar, num outro aspecto e dizer: se quer de fato atuar como governo, que o faça também com responsabilidade.
RDMNews: A frase do ministro Fernando Haddad, de que o Congresso precisa ter responsabilidade fiscal, o senhor concorda com ela?
Gilmar Mendes: Isso. Com certeza! Agora, a gente também está vendo uma outra situação, que é a dificuldade do governo de construir maioria em função até deste novo modelo das emendas parlamentares PiX, impositivas, e tudo, nós estamos vendo que já não basta distribuir emendas, é preciso fazer algo mais.
RDMNews: O senhor já defendeu o semiparlamentarismo. Continua defendendo?
Gilmar Mendes: Eu tenho a impressão de que, em algum momento, nós vamos ter que discutir essa questão do semipresidencialismo adaptada a nossa realidade. Nós vemos que o sistema é complexo. O semipresidencialista francês é um, nós vemos que o presidente tem um papel importantíssimo e tem outros modelos, o modelo português.
RDMNews: Mas aí isso seria com referendo ou plebiscito, não é?
Gilmar Mendes: Uma discussão que nós vamos ter de fazer no futuro.
RDMNews: Isso porque em 1963 e em 1993 a população brasileira disse não ao regime parlamentarista?
Gilmar Mendes: A história brasileira tem um período longo de parlamentarismo no Império.