Frei David se tornou conhecido do grande público ao receber uma homenagem do programa da TV Globo, “Caldeirão”, do apresentador Luciano Huck, pelo trabalho de inclusão social que exerce à frente da Organização de sociedade civil pública (Oscip), Educafro. (Foto: Humberto Azevedo / RDMNews)

ENTREVISTA DA SEMANA – Frei David

“Esse é o fenômeno que vai pegar muitos setores da sociedade de surpresa. Teremos muito mais desigrejados do que igrejados”, afirma Frei David

 

Numa entrevista exclusiva concedida ao portal RDMNews, o religioso católico militante da causa inclusiva da população negra, preta, parda e periférica nos espaços de poder da sociedade brasileira, falou sobre vários temas.

 

Por Humberto Azevedo

 

O franciscano David Raimundo dos Santos, 68 anos, conhecido popularmente apenas como Frei David, afirmou em entrevista exclusiva a reportagem do portal RDMNews que muito pouca gente, no país, inclusive estudiosos sobre tendências religiosas, parece que não estão observando o ritmo de crescimento das pessoas, que mesmo exercendo suas religiosidades, deixaram e deixarão de professar a fé em alguma determinada religião. Ele classifica isso como o movimento dos desigrejados e é esse o movimento que mais cresce no país.

“Cresce no Brasil o movimento que a gente chama de desigrejados. São pessoas que tem fé em Deus, tem reverência a Deus, faz suas orações pessoais, mas não querem nenhuma ligação, não querem nenhum compromisso com as estruturas das igrejas”, apontou o religioso, que é natural de Nanuque (MG) – mas foi criado em Vila Velha (ES).

Na entrevista, Frei David que é dirigente também da Educafro (Francisco de Assis Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes), uma instituição que trabalha com a inclusão social através da educação, com ênfase em políticas públicas e ações afirmativas direcionadas à população afrodescendente e carente, falou sobre vários temas.

“E junto com a teologia da prosperidade, adotaram agora a teologia do poder. Há um plano de poder dos evangélicos de assaltar a nação brasileira e manipular. Se fosse fazer [isso] em função do evangelho límpido de Jesus Cristo, ficaríamos até feliz. Mas querem assaltar o Brasil para tomar o poder e fazer conforme seus interesses.”

Pelo último censo, medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2022, a população negra, preta e ou parda representa 55,5% do total de brasileiros. Autodeclarados como negros e ou pretos representam 10,2% da sociedade. Já aqueles que se autodeclaram como pardos representam 45,3% do povo brasileiro.

A Educafro, que tem Frei David à frente, já bancou mais de 60 mil bolsas de estudo para que alunos negros, pretos e ou pardos pudessem obter um curso universitário. Além de oferecer gratuitamente diversos cursos vestibulares preparatórios para alunos de baixa renda (Foto: Humberto Azevedo / RDMNews)

Militante da causa defendida pelo movimento de pessoas negras, pretas, pardas e periféricas, o religioso fez questão de comparecer à posse da ministra e sua conterrânea, Cármen Lúcia, que assumiu pela segunda vez a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no último dia 3 de junho.

“A política é um dos espaços mais nobres para se fazer justiça! O projeto de Jesus Cristo é traduzido por justiça. Agora, o grande problema é quando as pessoas ditas cristãs que entram na política não tem o compromisso com o evangelho.”

Ele fez questão de destacar o papel da “mulher” Cármen Lúcia, única representante feminina a integrar a mais alta Corte judiciária do país, o Supremo Tribunal Federal (STF). As mulheres, de acordo com último censo do IBGE, representam 51,5% da população brasileira.

Na entrevista, Frei David afirmou que espera da nova gestão de Cármen Lúcia a frente do TSE o mesmo empenho do ministro Alexandre de Moraes para combater o uso das “fake news” no processo eleitoral que se avizinha e que elegerá prefeitos e vereadores nos 5568 municípios do país em outubro próximo.

“O povo está aprendendo os caminhos para bater e enfiar o pé na porta. E o povo está aprendendo a lutar com mais garra e determinação pelos seus direitos.”

“Temos muitas esperanças que ela [ministra Cármen Lúcia] vai manter a linha firme contra às ‘fake news’ e tudo aquilo que atrapalham [a realização de] uma boa eleição democrática, como foi [a gestão do] ministro Alexandre de Moraes”, iniciou.

Natural de Nanuque, no extremo leste das Minas Gerais, Frei David, é também um dos maiores defensores das cotas raciais como instrumento de oferecer a população negra, preta e ou parda do país reparação histórica pelos mais de 350 anos de prática escravista adota oficialmente pelo Brasil até o ano de 1888. (Foto: Humberto Azevedo / RDMNews)

O religioso abordou também a relação da sua Igreja Católica com as igrejas cristãs de vertente pentecostal e neopentecostal. Para ele, o futuro do cristianismo – independente das igrejas – é a defesa do evangelho pregado por Jesus em amor ao próximo, em partilhar a justiça com quem mais precisa.

“Lula, abra o seu coração e leve para o Palácio do Planalto mais negros e mais negras para conhecer os nossos valores. Temos negros [no governo Lula III] aí com dois pós-doutorados e estão aí exercendo a função secundária. Por quê? Por que a estrutura é injusta! A estrutura adota como tática da exclusão o racismo estrutural.”

“Estamos percebendo que está havendo uma somatória das pessoas que querem um Brasil melhor a partir do compromisso com o evangelho de Jesus Cristo”, comentou Frei David ao fazer várias críticas a vários pastores de fé pentecostal e neopentecostal que, segundo ele, possuem apenas “um plano de poder [para] assaltar a nação brasileira e manipular” e que não estaria baseada na mensagem de Jesus que são a crença do amor, da misericórdia e do perdão.

Abaixo, segue a íntegra da entrevista.

RDMNews: Tudo bem Frei Davi, como o Sr. vê essa mudança no comando do TSE, em que sai o ministro Alexandre de Moraes e entra a ministra Cármen Lúcia?

Frei David: Tudo bem, estamos felizes com esse momento bonito, onde vemos a ministra – ser uma mulher – assumindo o Tribunal Superior Eleitoral, e nós temos muitas esperanças que ela vai manter a linha firme contra às ‘fake news’ e tudo aquilo que atrapalham [a realização de] uma boa eleição democrática, como foi [a gestão do] ministro Alexandre de Moraes.

RDMNews: Com relação às “fake news”, o Congresso até agora não fez o dever de casa e não concluiu a votação do PL 2630 de 2020, que pretende estabelecer uma série de regras para se evitar o uso massivo deste expediente paralelamente com a ideia de se criar uma “constituição digital” para as plataformas virtuais (facebook, instagram, kwai, telegram, tik tok, youtube, whats’app dentre outras), que operam no ambiente cibernético. Visto isso, se o Poder Legislativo não cumpre o seu papel, cabe ao Poder Judiciário assumir esta responsabilidade para colocar ordem onde hoje é quase tudo uma desordem. Como o Sr. avalia esta questão?

Frei David: Olha, pode até parecer estranho, mas eu fiquei contente em saber que o presidente da Câmara, o Arthur Lira cometeu esse equívoco, esse erro e essa maldade. Eu fiquei feliz por quê? Por que assim o que vem da Câmara vai ser péssimo, com certeza, por que quem manda na Câmara é a direita! Quando a Câmara não faz o seu dever de casa, então, obrigatoriamente, a Câmara está dizendo: faça Tribunal Superior Eleitoral. E nós temos a expectativa que o Tribunal Superior Eleitoral a partir da experiência dos últimos anos, ele faça um bom trabalho de controle contra às ‘fake news’, com punição. Como já puniu em vários momentos. Então, eu confesso que estou muito mais feliz pelo erro do presidente da Câmara, o Arthur Lira, em ele ter sido omisso e não ter feito a lei da ‘fake news’, porque assim ele permitiu que o Tribunal Superior Eleitoral fosse muito mais expansivo na busca da justiça, na busca da honestidade, na busca do direito, contra às notícias falsas.

Frei David prega o evangelho do amor de Jesus de Nazareth. Ele foi um dos primeiros a se manifestar favorável, na década de 90, a adoção das cotas raciais para ingresso de estudantes negros, pretos e pardos em universidades públicas e que passou a vigir desde o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). (Foto: Humberto Azevedo / RDMNews)

RDMNews: Agora falando em termos de representatividade, como o Sr. destacou a importância da Cármen Lúcia assumir o comando do TSE, num momento em que ela é a única mulher atualmente com assento tanto no TSE, como no STF. Assim como não há uma única pessoa negra, preta e ou parda, que é maioria representativa da nossa população, nos cargos de alto comando do Judiciário. Como resolver esta questão da falta de representatividade de segmentos da população brasileira, como as mulheres e os de origem afrodescendente?

Frei David: Só tem uma solução. É os governantes, Lula, a nível de Executivo; o Arthur Lira e o [Rodrigo] Pacheco, a nível de Legislativo; o [Luís Roberto] Barroso, a nível de Judiciário; em que são as autoridades máximas [do país] perceberem, que o Brasil foi montado em cima de uma ‘fake news’ [que nega a] chamada de racismo estrutural. o racismo estrutural foi a maneira de se fazer de se praticar o racismo, sem dizer [declaradamente] que era racista. Isso é ‘fake news’! Então, o racismo estrutural é uma maneira de dizer [e estabelecer] uma ‘fake news’ contra o povo negro. E nós queremos, portanto, que o Lula perceba esse erro dele [de não indicar uma pessoa preta para o STF]. Ele poderia ter indicado uma mulher negra para ministra do STF e não o fez isso por quê? Por que há um grande erro, no Brasil, de se escolher para ministro aqueles que jantam e ou almoçam consigo. Agora, pergunto: quantos negros almoçam com Lula? Quantas negras almoçam com o Lula? E esse é o grande problema. Então, Lula, abra o seu coração e leve para o Palácio do Planalto mais negros e mais negras para conhecer os nossos valores. Temos negros [no governo Lula III] aí com dois pós-doutorados e estão aí exercendo a função secundária. Por quê? Por que a estrutura é injusta! A estrutura adota como tática da exclusão o racismo estrutural.

“O racismo estrutural é uma maneira de dizer [e estabelecer] uma ‘fake news’ contra o povo negro.”

RDMNews: Ainda com relação a esta falta de representatividade da população afrodescendente, que é a maior fatia da população brasileira, ela também pode exigir isso, como se diz na expressão de colocar o pé na porta, não? Até para forçar essa ocupação de espaços nos ambientes de poder por gente que forma a maioria da nossa gente, não? Dá para fazer isso?

Frei Davi: Não só temos, como temos feito isso. Por exemplo, nós, foi a Educafro, que convenceu dois partidos políticos de emprestar seus nomes e entramos com um processo aqui no Tribunal Superior Eleitoral exigindo, que os partidos distribuíssem as verbas eleitorais também com a população negra. Então, nós enfiamos o pé na porta e para a nossa sorte, o Tribunal Superior Eleitoral em votação votou a favor de que nós, afro-brasileiros, temos direitos também na mesma proporção de afro-brasileiros que saíram candidatos em verbas financeira. Só que aí o Tribunal Superior Eleitoral cometeu um equívoco. Talvez, por pressão. Talvez, não! Por pressão dos presidentes dos partidos políticos do Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral disse que essa norma só ia valer na eleição seguinte [que agora 2024] e não na próxima eleição [2022]. Nós da Educafro, mais uma vez, percebendo que o Tribunal Superior Eleitoral deu muito mais ouvido aos presidentes de partidos do que a voz do povo, nós entramos no Supremo Tribunal Federal contra o Tribunal Superior Eleitoral. E o Supremo Tribunal Federal determinou que o Tribunal Superior Eleitoral colocasse em prática a norma de que os partidos seriam obrigados a distribuir as verbas eleitorais [seguindo os critérios para inclusão das mulheres e da população negra, preta e ou parda] já naquela eleição [de 2022]. Então, ou seja, o povo está aprendendo os caminhos para bater e enfiar o pé na porta. E o povo está aprendendo a lutar com mais garra e determinação pelos seus direitos.

Criado no município de Vila Velha (ES), Frei David, pretendia ser diplomata de formação nos anos 70 para promover a paz. Desistiu após se deparar diante de um ambiente elitista e voltado para as classes mais abastadas, foi aí que resolveu, segundo ele próprio, entrar para a vida religiosa e se transformar numa “diplomata da mensagem de Jesus”. (Foto: Humberto Azevedo / RDMNews)

RDMNews: E o Sr. é um importante religioso de uma uma religião fundadora do Brasil, a Igreja Católica, e o Brasil hoje está passando por profundas transformações em que movimentos religiosos, conservadores, como a própria Igreja Católica já atuou desta maneira na política do século 19, com uma vertente política forte e aguçada, mas que agora, neste início de século 21, este movimento volta a ser repetido e está sendo exercido por igrejas cristãs de fé pentecostal e neopentecostal, importadas de missionários estadunidenses. Talvez, os métodos lá da Igreja Católica, por padres, bispos, no passado, fosse bem diferente dos métodos agora utilizados por pastores pentecostais e neopentecostais, mas o objetivo é o mesmo. Como o Sr. vê esse acontecimento e novo cenário brasileiro?

Frei David: Olha só, o novo cenário brasileiro está vindo dentro de uma compreensão de uma religião da chamada teologia da prosperidade. A teologia do amor, a teologia da partilha, a teologia da distribuição, a teologia da libertação, a teologia  da conscientização, tudo isso, foi jogado de lado. O que determina hoje é a teologia da prosperidade. E junto com a teologia da prosperidade, adotaram agora a teologia do poder. Há um plano de poder dos evangélicos de assaltar a nação brasileira e manipular. Se fosse fazer [isso] em função do evangelho límpido de Jesus Cristo, ficaríamos até feliz. Mas querem assaltar o Brasil para tomar o poder e fazer conforme seus interesses e conforme os seus ganhos particulares. Isso não é religião! Isso é uma ofensa total a Jesus Cristo e uma ofensa total a todos os princípios cristãos de que você pode beber, de que nós possamos beber, do sermão da montanha.

RDMNews: E como que a Igreja Católica, enquanto instituição, avalia esse cenário de fé multifacetada em diversas tendências? Como se dá o ecumenismo neste momento, sobretudo, junto às demais igrejas de fé cristã (antigamente denominadas como protestantes) que não se consorciam a estas teologias da prosperidade, do poder e do domínio?

Frei David: Há coisas fantásticas que as pessoas estão vendo e estão elogiando. Por exemplo, o grande espaço de participação do pastor [e deputado pelo PSOL-RJ] Henrique Vieira nos vários espaços católicos. Sejam em programas [de rádio e tv] católicos, eventos católicos. Há um grande espaço também a [um] pastor de Goiás, que está tendo [abertura] nos espaços católicos. Ou seja, nós estamos percebendo que está havendo uma somatória das pessoas que querem um Brasil melhor a partir do compromisso com o evangelho de Jesus Cristo está se juntando para mostrar a sociedade uma nova, não é uma nova, mas a verdadeira proposta de igreja de Jesus Cristo. Eu fico feliz quando vejo o pastor Henrique lá na Câmara dos Deputados debatendo com os pastores de direita. Ele bota todos eles no bolso! Somente quem não quer enxergar, não enxerga a verdade que o pastor Henrique transmite, quando ele explica aquele fato político com a visão da fé que ele tem em Jesus Cristo e com a visão que os demais tem no dinheiro, na prosperidade e no poder.

“Nós temos a expectativa que o Tribunal Superior Eleitoral a partir da experiência dos últimos anos, ele faça um bom trabalho de controle contra às ‘fake news’.”

RDMNews: Agora como o Sr. analisa esta questão da religiosidade entrar na política. Se por um lado é bom, isso também pode ser perigoso, não? Sobretudo se ao invés da religiosidade, entra o religiosismo, não?

Frei DavidVeja só, a política é um dos espaços mais nobres para se fazer justiça. A política é um dos espaços mais nobres para se fazer justiça! O projeto de Jesus Cristo é traduzido por justiça. Agora, o grande problema é quando as pessoas ditas cristãs que entram na política não tem o compromisso com o evangelho. A única solução é despertar essas pessoas para voltarem a ter compromisso com o evangelho.

Frei David, um dos maiores ícones da luta antirracista, quer apenas que todos tenham acesso a educação e a oportunidades. Sua luta é por um Brasil e um mundo livre das desigualdades sociais, segundo ele, a grande inimiga da paz universal. (Foto: Humberto Azevedo / RDMNews)

RDMNews: Alguns especialistas, que estudam de perto o avanço da fé cristã pentecostal e neopentecostal, avaliam que em alguns anos o número de fieis destas igrejas, se somadas, será maior que o número de fieis da Igreja Católica, que algumas décadas atrás representava mais de 95% da população brasileira. Agora, como alguns líderes destas igrejas pentecostais e neopentecostais são muito fundamentalistas, o Sr. não teme que isso pode representar com o aumento da intolerância religiosa o surgimento, no Brasil, de terroristas cristãos, tal qual alguns países árabes e mulçumanos enfrentam esse problema com o terrorismo promovido por fundamentalistas islamitas? Lembrando que o fundamentalismo cristão exacerbado também já provocou esse tipo de terrorismo no Reino Unido séculos atrás e mais recentemente na Irlanda.

Frei David: Olha só, o que vai acontecer, no Brasil, tem várias possibilidades. Mas o que vai acontecer, de fato, e, que quase ninguém está falando, é uma coisa nova: o volume de gente que entrou para as igrejas pentecostais e que estão decepcionadas é muito grande. Então, cresce no Brasil o movimento que a gente chama de desigrejados. São pessoas que tem fé em Deus, tem reverência a Deus, faz suas orações pessoais, mas não querem nenhuma ligação, não querem nenhum compromisso com as estruturas das igrejas. Isso chama-se desigrejados. E, talvez, esse é o fenômeno que vai pegar muitos setores da sociedade de surpresa. Teremos muito mais desigrejados do que igrejados.

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