Terra, ar e mar: tráfico no Brasil usa até mergulhadores para acoplarem drogas nos navios
Um levantamento do FBSP mostra que a Região Amazônica do país se consolida como a principal porta de entrada das drogas: quase 40% da cocaína produzida no mundo passa pelos estados do bioma. No Sudeste, a situação levou o governo a declarar a Garantia da Lei da Ordem (GLO) em portos e aeroportos no Rio de Janeiro e em São Paulo
Por Sputnik Brasil
De uma ponta à outra, quase seis quilômetros de extensão em meio às montanhas e o mar esverdeado
típico da costa fluminense. Entre docas e píeres, a movimentação de
mais de 55,8 milhões de toneladas de cargas só no ano passado traduz a dimensão do segundo maior porto público brasileiro: o de Itaguaí, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Estruturas como essa também são alvo da atuação de grandes facções criminosas no Brasil para o
tráfico internacional de drogas, principalmente com
destinos à Europa e à África.
Conforme mostrou uma reportagem especial da Sputnik Brasil na última terça-feira (30), metade de toda a cocaína produzida no mundo passa todos os anos pelo país por terra, ar e mar.
“O tráfico vem se adequando mundialmente, e o combate é um grande desafio. De um lado tem a repressão e, do outro, a adequação dos criminosos, criando novas formas de exportar essa droga, que é uma atividade muito lucrativa”, resume o capitão de mar e guerra (fuzileiro naval) Alex Ribeiro, comandante do
1º Batalhão de Infantaria de Fuzileiros Navais.
Desde novembro do ano passado, o capitão foi designado para comandar o Grupo-Tarefa Portos do Rio de Janeiro — da
Garantia da Lei e da Ordem (GLO) —, diante dos episódios crescentes de violência por conta do crime organizado, tanto para o tráfico de drogas quanto de armas. O
presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez o decreto para a operação que autoriza o
uso das Forças Armadas em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo, os mais movimentados do país, até maio deste ano.
Em portos como Itaguaí e Santos, que são alvo das intervenções da GLO, chegam a atracar embarcações de até nove andares e com capacidade para transportar milhares de carros. Para driblar a fiscalização, as facções têm usado até mergulhadores que escondem cocaína no casco dos navios, em uma parte conhecida como caixa de mar, que fica a 10 metros de profundidade e é por onde entra a água para resfriar os motores. “Os traficantes vêm utilizando uma técnica de mergulho para acoplar essa droga na parte inferior dos navios, chamadas de obras vivas [a parte totalmente submersa], onde prendem a carga com drogas. Então ela fica invisível aos olhos e é muito difícil de detectar”, detalha o comandante.
No início de abril, uma ação conjunta entre
Marinha e Polícia Federal (PF) conseguiu apreender 212 quilos da droga. O conteúdo estava escondido no casco de um
cargueiro que seguiria para a Alemanha em oito pacotes. “Essa operação teve o uso de mergulhadores da Marinha, que já têm essa expertise, e conseguiram encontrar grande quantidade de cocaína […]. Os portos do Rio de Janeiro e de Santos são alguns dos
mais utilizados para o transporte de drogas. Já existia um trabalho de outros entes [como PF, Receita Federal e Guarda Portuária], e a Marinha veio [por meio da GLO] para somar esforços, colocando os seus meios à disposição para integrar esse trabalho”, explica o capitão de mar e guerra.
Apreensões a mais de 300 km da costa brasileira
No fim de março, outra apreensão da Marinha — em parceria com a Receita Federal em Itaguaí — terminou com 1,3 toneladas de cocaína encontradas em um contêiner de sacas de café, um dos maiores volumes ao longo de toda a GLO. “Com essas ações, há uma migração do tráfico de drogas para outras rotas, que não são conhecidas por eles. Então precisam se readequar para fazer a exportação desse material ilícito, tornando-se mais vulneráveis às apreensões em outros locais, até mesmo fora de onde a GLO está”, argumenta.
Para exemplificar a
dimensão continental do Brasil — que é um dos maiores desafios no combate ao tráfico de drogas —, o capitão da Marinha lembra de operações que conseguiram localizar drogas em
navios a mais de 300 quilômetros da costa brasileira, na região conhecida como Amazônia Azul. “São ações integradas que acontecem tanto em navios mercantes quanto em transatlânticos. Neste momento, existem ações nos cruzeiros que estão partindo para o exterior, já que estamos no encerramento da temporada no Brasil e começando na Europa. Isso se configura como
outra possibilidade para o tráfico de drogas, e a Marinha realiza iniciativas para coibir e fiscalizar esse transporte para os navios que estão regressando para o continente europeu”, diz.
Quais são as operações de GLO?
A GLO é uma operação militar que
só pode ser convocada pela Presidência da República em
situações de desordem pública. Prevista para ser encerrada em maio, ainda não há expectativa se as ações
serão prorrogadas por mais seis meses. Só pela Marinha foram empenhados cerca de 1,9 mil militares, além de viaturas, embarcações de grande porte e lanchas blindadas.
Nos portos, a complexidade é ainda maior diante do volume de contêineres e das dimensões dos cargueiros. “Eles são inspecionados com a verificação de lacres, e ainda há o uso de cães farejadores verificando se existem drogas colocadas nos píeres dos navios ou acopladas nas caixas de mar. Então são muitos pontos para serem focados nas inspeções ostensivas, realizadas pontualmente com informações de inteligência“, frisa.
Com ou sem a renovação da GLO, o comandante diz que o legado que fica é a
maior integração entre as corporações e os órgãos de Estado, como
PF e Receita Federal. “É um somando com o outro e uma confiança interpessoal que vai aumentando. Também ajuda a entender como o outro trabalha e isso funciona muito bem [no combate ao crime]”, resume. Segundo balanço preliminar repassado pelo
Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a pedido da Sputnik Brasil, até o início de abril foram
apreendidas 444 toneladas de drogas pela GLO, além de 269 armas e prisão de 2,5 mil pessoas. Ao todo, a operação atuou na revista de quase 600 mil passageiros, 10,2 mil embarcações e 7,7 mil contêineres. Porém, a pasta não atendeu ao pedido de entrevista sobre a efetividade da GLO até o momento.
‘Impacto me parece pouco significativo’
Já o coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), David Marques, avalia à Sputnik Brasil que a GLO possui um caráter
muito mais “simbólico e político” em mostrar a
disposição do governo federal no apoio ao combate ao narcotráfico. “O impacto concreto, em
termos de apreensões e na dinâmica criminal, me parece pouco significativo. É óbvio que uma complementação de pessoal na fiscalização e no patrulhamento dessas estruturas logísticas do narcotráfico pode desencorajar alguns desses agentes criminais a utilizarem essas regiões […], mas não me parece o melhor arranjo possível, sobretudo porque as operações da GLO são, em regra,
muito caras para o tipo de resultado que produzem. Por isso, são ou deveriam ser vistas como excepcionais”, complementa.
Além disso, o especialista ainda questiona se, após o encerramento do decreto, a
capacidade de policiamento que foi incrementada pelas Forças Armadas será interrompida. “Vai ocorrer uma complementação de efetivo da PF, de polícias estaduais ou, mesmo, da Força Nacional ou só terá uma retirada? Essas são questões que colocam em dúvida a
efetividade dessa medida, embora seja importante o governo federal se preocupar em oferecer melhores condições de enfrentamento à violência produzida pelas facções”, diz Marques, que lembra ainda dos
casos de México e Colômbia, onde o uso das Forças Armadas no combate ao tráfico de drogas não produziu bons resultados. “Então entendo que o Brasil não deve trilhar esse caminho.”
Qual é a relação existente entre a Amazônia e o tráfico de drogas?
Território que corresponde a quase 60% da extensão do Brasil, a
Amazônia Legal é formada por oito estados (Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Amapá, Tocantins, Mato Grosso e parte do Maranhão) e
faz fronteira com outros sete países (Guiana Francesa, Suriname, Guiana, Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia). Um levantamento inédito divulgado no fim de 2022 pelo FBSP revelou que
40% das 2 mil toneladas de cocaína produzidas anualmente no mundo têm como rota a região, para além dos outros 10% que passam pelas demais partes do país, como Rio de Janeiro e São Paulo.
A principal porta de entrada para a droga é o Amazonas, seguida pelo Pará, estado considerado como passagem obrigatória para os materiais ilícitos. A “sofisticação” das organizações criminosas é cada vez maior e
há uso até de submarinos pelas facções. Em fevereiro, um submersível chegou a ser localizado por pescadores em São Caetano de Odivelas, no Pará, com
capacidade de carga para até 6 toneladas.
As investigações já apontaram que o narcossubmarino foi fabricado de forma artesanal, com uso de fibra e resina. Apesar das fortes suspeitas, ainda não há confirmação se a
estrutura era usada para atividades criminosas. E são justamente as
rotas fluviais amazônicas as principais usadas pelas facções criminosas para o escoamento dos materiais, com os
chamados piratas da Amazônia. Em fevereiro, a Sputnik Brasil conversou com exclusividade com um agente da PF que atua na região há décadas e pediu anonimato. Segundo ele, a pirataria se tornou uma “milícia” que atua nos rios e está cada vez mais forte.
“O foco são os carregamentos de droga escoados do Peru e da Colômbia. As lanchas são abordadas por embarcações piratas fortemente armadas, com as drogas, as armas e os motores das embarcações tomados e, por vezes, os traficantes mortos e jogados nos rios. A atuação dos piratas é mais intensa entre Tefé, Alvarães e Fonte Boa [no Amazonas]. O estado instalou uma Base Arpão para fiscalizar e tentar frear a ação dos piratas, porém há canais nos rios que burlam essa atuação. E o efetivo e as ações da polícia são insuficientes perante a amplitude do tráfico e dos piratas”, disse à época.
Apenas um dos vários exemplos das dificuldades enfrentadas pelo poder público na Região Amazônica, o coordenador de projetos da FBSP, David Marques, acrescenta ainda na existência de um enorme “ecossistema de pistas ilegais para o pouso de avião e a expansão da malha ferroviária brasileira para as regiões Norte e Nordeste”. Além disso, o especialista pontua que a Amazônia Legal faz fronteira com todos os países produtores de cocaína: Colômbia, Peru e Bolívia.
“Há um patrulhamento de fronteiras exercido, sobretudo, pelas Forças Armadas. Mas temos também as forças policiais, que são estaduais. As investigações também são divididas entre os estados, e o crime não respeita esse tipo de fronteira. Na verdade, desenvolve-se justamente nessas brechas e nessas ausências […]. A região possui uma posição geográfica privilegiada e passa por uma questão também de arranjo institucional e de capacidade estatal instalada, o que coloca um conjunto de dificuldades para o Estado fazer esse controle, por um lado, e um conjunto de oportunidades que se abrem para os criminosos explorarem essas vulnerabilidades, por outro. Então é uma região de florestas, de muitos rios, com áreas de difícil acesso e uma malha urbana mais reduzida em relação ao restante do país, o que traz empecilhos para patrulhar, fiscalizar e investigar [o crime]”, argumenta o analista.
‘Mulas’ são preparadas para levarem drogas para a Europa?
Um dos
grupos mais vulneráveis em toda a cadeia do tráfico internacional de drogas, pessoas
aliciadas pelas facções criminosas para transportarem produtos como a cocaína no estômago são conhecidas como “mulas”. No fim do ano passado,
mais de 30 pessoas foram localizadas em um apartamento em São Paulo, que também continha cerca de mil cápsulas de conteúdo ilícito.
Conforme as investigações, o grupo era obrigado a ingerir cenouras pequenas como forma de treinamento, só se alimentava do básico para evitar a rejeição do organismo à droga e até era obrigado a tomar remédios. Há ainda pessoas usadas pelo tráfico para driblar a fiscalização nos aeroportos que levam a droga em partes do corpo, como o reto e a vagina. Caso a cápsula com a cocaína se rompa durante o trajeto, há risco de hemorragia, convulsão e inclusive morte instantânea.
Autor do livro ‘Um outro mundo (com drogas) é possível’, o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB) Pedro Costa explicou à Sputnik Brasil que vulnerabilidades como desemprego, pobreza e o modelo da sociedade são usadas pelo tráfico internacional de drogas a seu favor no aliciamento das “mulas”.
“São pessoas geralmente nas franjas mais marginalizadas e subalternizadas da classe trabalhadora e, não por acaso, são negras. Existem determinadas posições nessa cadeia, nesse edifício do tráfico, que são a base dessa pirâmide que é mais periférica e cada vez mais jovem […] A gente conduziu, por exemplo, uma revisão da literatura na qual foi constatado muito dessa condição periférica negra, jovem e pobre para o mercado das drogas ilícitas, seja na condição dessas mulas, seja do aviãozinho, seja de quem vai ficar de olheiro, de espião, ou que vai estar lá fazendo comercialização na boca”, explica o especialista.
Além disso, o professor enfatiza que o tráfico muitas vezes aparece como uma das poucas alternativas de sobrevivência para essas pessoas. “A gente tem uma situação de ampla precarização na qual o tráfico de drogas comparece como uma oportunidade, como uma tentativa de dirimir essa situação, e que por mais que por um lado satisfaça algumas das necessidades mais elementares e básicas, vai aprofundar uma série de outras, vinculadas justamente ao seu caráter ilícito”, acrescenta.
Relatório da
Anistia Internacional aponta ainda que em
pelo menos 13 países há pena de morte para o tráfico internacional de drogas. Em 2015, o carioca Marco Archer Cardoso Moreira, de 53 anos, foi condenado à execução por conta do crime. Apesar dos apelos do governo brasileiro à época, quando inclusive a então
presidente Dilma Rousseff escreveu uma carta ao homólogo Joko Widodo, o pedido de clemência foi rejeitado e Moreira morto depois de 11 anos na prisão.
No ano passado, a brasileira Manuela Vitória de Araújo Farias, que também foi presa com cocaína na Indonésia, conseguiu escapar da pena de morte e foi condenada a 11 anos de prisão, além de multa de mais de R$ 300 mil.