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Que ano é hoje? Críticas a Madonna fedem a naftalina e mediocridade

Os fiscais da vida e dos corpos alheios nos lembram que nenhum direito é garantido, nem à própria liberdade

Por Projeto Colabora

Quando acordei no domingo, ainda extasiada depois de ter vivido, com mais de 1,5 milhão de gente de sorte, o espetáculo gratuito da Madonna em Copacabana no último sábado, fiquei uns minutos em confusão mental. Não por causa do corpo dolorido de pular em areia fofa a cada hit do maior show da carreira dela que cantarolo e danço por boa parte dos meus 38 anos. Tampouco por ressaca, de êxtase ou de cerveja, que poderia ter me acometido. Fiquei sem saber, por uns instantes, em que ano estávamos. “Não é possível que a Madonna incomoda tanto até hoje”, pensei. Mas estava redondamente enganada.

Em pleno 2024, ainda há gente tacanha que se escandalize com uma mulher que nunca deixou que a definissem para ganhar estrelinha de bom comportamento. Muito pelo contrário. Madonna sempre operou na desobediência e na recusa de uma normatividade que sempre aprisionou quem não se conforma a ela. E levou quem quisesse ir junto atrás.

Quando o mundo todo chamava a HIV/AIDS de “câncer gay”, Madonna lançou, no encarte do icônico “Like a prayer”, uma cartilha de informações sobre a doença, enquanto a Igreja condenava o uso de camisinha “porque sexo é para reprodução” e o governo dos Estados Unidos fazia campanhas pelo celibato de jovens.

Em Copacabana, no auge dos seus 65 anos, Madonna, só porque pode, beijou mulher trans com os peitos de fora, esfregou-se em homens, performou várias interações sexuais com seu balé de corpos diversos e usou a camisa da seleção brasileira com a drag queen mais famosa do Brasil, Pabllo Vittar, enquanto dançavam, se tocavam e sorriam. Foi a salvação do destino da camisa amarelinha em ser uniforme de reacionário. Agora, felizmente a amarelinha passou a ser coisa de bicha, de sapatão, de vagabunda. Até que enfim!

É preciso muita mediocridade para defender um puritanismo hipócrita que tapa os olhinhos diante de uma mulher que canta uma sexualidade com prazeres para si, e não a serviço dos homens. Vulgares são as incontáveis denuncias de pedofilia na Igreja Católica ao longo da História, é pastor dizendo que pegaria a própria filha, é criança ralando na boquinha da garrafa em festa de família com todo mundo aplaudindo. O problema com Madonna nunca foi a sexualidade, o sexo, a apologia, mas sim a pachorra de não representar um sexo que só existe para servir homens heterossexuais.

As críticas ao show parecem saídas do núcleo de beatas de uma novela dos anos 1990 e fedem a naftalina: “vagabunda”, “satanismo”, “Sodoma e Gomorra”. Estão no mínimo 40 anos atrasadas, porque Madonna nunca deu o menor sinal de que deixaria de arrombar qualquer porta que lhe fosse fechada na cara: machismo, etarismo, LGBTQIA+fobia, moralismo, puritanismo religioso, racismo e tantas outras. Ainda que tivesse que levantar bandeiras que não fossem suas em quatro décadas de carreira. E ela levantou. Em Copacabana, renovou os votos com a gente depravada que se comoveu sob sua batuta nas areias : “Não tenham medo, pessoal! Eu vou lutar por vocês até o dia que eu morrer!”

Multidão no show de Madonna no Rio: cantora segue abrindo caminho para as pessoas viverem mais livres e mais felizes sendo quem são (Foto: Fernando Maia / Prefeitura do Rio - 04/05/2024)
Multidão no show de Madonna no Rio: cantora segue abrindo caminho para as pessoas viverem mais livres e mais felizes sendo quem são (Foto: Fernando Maia / Prefeitura do Rio – 04/05/2024)

E antes que eu soe groupie demais, é óbvio que o mundo é mais complexo do que defender cantora pop – ainda que se trate da rainha. Madonna já deu declarações pró-Israel na guerra contra a Palestina, e já publicou fake news sobre vacina, coisas a que eu e qualquer pessoa de esquerda se opõe radicalmente- ou deveria. Quem tem mania de idolatrar mito cegamente é o lado de lá, esse que chora na internet com mulheres trans de topless em um palco, mas tem “travesti” no histórico do Xvideos. É simplório e ingênuo demais esperar perfeição da Madonna. O grande barato é ela seguir representando a gente apesar de suas contradições, e também por causa delas.

Os fiscais da vida e dos corpos alheios nos lembram que nenhum direito é garantido, nem à própria liberdade. Na publicidade do Itaú, um dos patrocinadores do espetáculo em Copa, Madonna diz que a coisa mais controversa que já fez foi “permanecer aqui”. Seguir abrindo caminho para as pessoas viverem mais livres e mais felizes sendo quem são. Na vida, na cama e fora de qualquer armário, sem culpa. Quem se incomodar que se ajoelhe no milho e chore.

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