Movimento de servidores negros, pretos e pardos denuncia demora demasiada do Senado em enviar proposta, já aprovada pela Casa, para a Câmara
Frei David, da Educafro, chama atraso no envio do projeto do Senado para Câmara de “absurdo” e questiona do “por que desta maldade e desta crueldade com o povo negro”; “Por que deste racismo estrutural?”, pergunta o religioso um dos expoentes do movimento que busca emancipação da população afrodescendente.
Por Humberto Azevedo
O movimento intitulado “Coletivo Maria Firmina”, criado por servidores públicos federais de origem negra, preta e parda, vem denunciando uma demora demasiada por parte do Senado Federal em enviar o texto do Projeto de Lei (PL) 1958 de 2021, já aprovado por àquela Casa, para a Câmara dos Deputados.
O PL renova por mais dez anos o instituto de cotas raciais para ingresso no serviço público, visto que a lei 12990 de 2014, que instituiu a iniciativa, perde a validade no próximo domingo, 9 de junho. A proposta, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), foi aprovada pelos senadores no último dia 22 de maio conforme o texto apresentado pelo relator da matéria, senador Humberto Costa (PT-PE).
Um dos articuladores do “Coletivo Maria Firmina”, Gehovany Figueira, vê uma “situação é muito estranha” nessa demora, em que geralmente esse tipo de ato administrativo de uma Casa para a outra se é resolvido em questão de horas. “[Mas] como nossa sociedade é baseada no racismo estrutural, há um receio que tal situação esteja permeando [essa] demora”, comentou Figueira a reportagem da RDMNews.
Segundo o articulador do “Coletivo Maria Firmina”, caso a proposta não seja aprovada pela Câmara dos Deputados e remetida à sanção presidencial, as cotas só serão garantidas via o Poder Judiciário, visto que há uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida em caráter liminar pelo ministro Flávio Dino na Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 7654 apresentada pela federação partidária formada por PSOL e Rede Sustentabilidade. Ou seja, àquelas pessoas de origem afrodescendente que quiserem ingressar em futuros concursos por meio das cotas, isso terá que ser feito ajuizando uma ação na justiça.
“A regra continua a vigorar enquanto não for decidida a ADI pelo STF, ou não houver uma nova lei em vigor, prorrogando as cotas”, explica Gehovany Figueira.
EDUCAFRO
A denúncia do “Coletivo Maria Firmina” é corroborada pela Educafro, entidade sem fins lucrativos que reúne “pessoas voluntárias e solidárias que lutam pela inclusão de negros, em especial, e pobres em geral, nas universidades públicas, prioritariamente, ou em uma universidade particular com bolsa de estudos, com a finalidade de possibilitar empoderamento e mobilidade social para população pobre e afro-brasileira”.
Dirigida por Frei David Raimundo dos Santos, o religioso militante que já conseguiu oferecer ensino superior a 60 mil pessoas afrodescendentes por meio da Educafro, classifica o atraso no envio do projeto do Senado para Câmara de “absurdo” e questiona o “por que desta maldade e desta crueldade com o povo negro”.
“Foi com muita dificuldade que a comunidade negra conquistou [a lei] 12990 de 2014. Ali, nas várias reuniões de comissões, que participamos levando em cada reunião um ônibus com mais de 50 jovens, nós tivemos muitas dificuldades de negociar com a direita – que era radicalmente contra o projeto. Então, muitas vezes, nós fomos obrigados a ceder o dedo para não perder a mão. E um desses momentos foi quando um grupo de deputados de direita disse: ‘Não! Só aprovaremos o projeto se ele tiver um tempo para terminar. Portanto, se colocar no projeto que ele termina em dez anos, a gente aprova. Se não, a gente não aprova. E foi assim, algo muito tenso, e por que vimos que em de anos não resolveria o problema, em dez anos não seria possível alcançar a equidade e, portanto, nós tivemos esse problema”, contou Frei David – um dos um dos expoentes do movimento de inclusão da população afrodescendente
“Esses dez anos vencem agora no dia 9 de junho de 2024 e com muito trabalho, com muita dificuldade, conseguimos por várias forças atuando da comunidade negra [junto] a deputados, senadores e a outras pessoas solidárias, conseguimos que o projeto fosse aprovado no Senado também com muitas negociações, cedendo mais uma vez os dedos para não perder o prazo. O projeto foi aprovado e normalmente o projeto aprovado e em caráter de emergência, esse projeto vai no mesmo dia para a Câmara. E isso foi no dia 23 de maio. E o projeto ficou parado nas instâncias burocráticas por alguém que é contra as cotas e só foi liberado para a Presidência do Senado assinar e encaminhar para a Câmara no dia 28 de maio. E lá está mais uma vez, também, parado no gabinete da Presidência do Senado até hoje, 5 de junho”, complementou o religioso da Educafro.
RACISMO ESTRUTURAL
Na sequência, Frei David perguntou também do “por que deste racismo estrutural?” contra a população negra, preta e parda beneficiária das cotas, que corrige séculos de distorções sociais e econômicas. Segundo o religioso, as cotas raciais estendidas para ingresso no serviço público permite à população hoje periférica e excluída melhorar a vida no local onde moram, assim como melhorar a vida de parentes e amigos.
“Ora, esse projeto deixa de existir a partir de 9 de junho e nós sabendo da má vontade dos senadores e deputados de direita contra os direitos do povo afro-brasileiro, nós da Educafro, convencemos o partido da Rede, o PSOL, para emprestar seus nomes e abraçar esse processo nosso contra a União, contra os deputados e senadores, onde solicitávamos ao Supremo Tribunal Federal, que determinasse por medida cautelar, que se até 9 de junho os deputados e senadores não aprovassem as cotas, o STF estaria ali estendendo a cota que acaba dia 9 de junho, agora, com prazo indeterminado. Ou seja, até a Câmara e o Senado aprovar [esse] projeto. Bem, de modo que nós fizemos isto já sabendo previamente da má vontade dos deputados e senadores de direita”, acrescentou Frei David.
“E o [novo] projeto, então, está parado ainda lá desde o dia 23 de maio em que normalmente sai em 24 horas. Portanto, um absurdo! Vários outros projetos foram aprovados muito tempo depois do nosso e já estão tramitando na Câmara. E esse nosso projeto está lá parado. E nós queremos saber, então, dos senadores, bem como dos setores administrativos responsável, do por que desta maldade e desta crueldade com o povo negro. Por que deste racismo estrutural? Vamos mudar! Vamos criar uma pátria mais amorosa, mais respeitosa, com direitos dos negros e indígenas”, finalizou o religioso da Educafro.
MARIA FIRMINA
De acordo com Gehovany Figueira, ex-coordenador da Educafro no Distrito Federal (DF), o Coletivo Maria Firmina “não tem presidente, mas as decisões são coletivas e com a participação de articuladores”. Segundo ele, “o coletivo gostaria de saber o por quê de uma tramitação tão lenta para uma legislação tão inovadora e que combate o racismo estrutural”.
A inspiração do nome do “Coletivo Maria Firmina” é inspirado na história da escritora Maria Firmina dos Reis, que atualmente é reconhecida como a primeira romancista do país. Filha de mãe branca e pai negro, registrada sob o nome de um pai ilegítimo e nascida na Ilha de São Luis (MA), seu primeiro romance, “Úrsula” é datado de 1859 e que é uma crítica – impensável à época – contra à escravidão por meio da humanização de personagens escravizados.
Maria Firmina dos Reis (1825 – 1917) foi ainda professora de escola pública no município de Guimarães, no interior do Maranhão. Em 1887, a autora que dá nome ao coletivo que busca o desenvolvimento da cidadania junto à população negra, preta, parda e periférica escreveu o romance “A escrava”, que conta a história de uma mulher de classe alta sem nome que tenta, sem sucesso, salvar uma mulher escravizada.
“O coletivo Maria Firmino é formado por servidores públicos negros, pretos e pardos (afro-descendentes) concursados que lutam por uma representatividade cada vez maior da sociedade brasileira nos órgãos de Estado. [São] pessoas negras dentro do serviço público com papel de protagonismo, como servidores do Judiciário, auditores do TCU [Tribunal de Contas da União], professores universitários, entre muitos outros cargos ocupados. [Somos] cerca de 200 servidores, todos concursados e negros” afirma Gehovany.
“O coletivo não tem personalidade jurídica, mas é uma experimentação que está dando certo, com pessoas negras bem conscientes de sua negritude e articuladas”, complementou Figueira.
SEM RESPOSTA
A reportagem da RDMNews entrou em contato com a assessoria do presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), mas até o fechamento desta edição não recebeu nenhuma resposta dos motivos do não envio do PL 1958 de 2021, já aprovado na Casa, e ainda sem tramitação na Câmara dos Deputados.
Na página de tramitação do referido projeto, no Senado, consta as seguintes informações: “Decisão:Aprovada pelo Plenário; destino: à Câmara dos Deputados; último local: 28/05/2024 – Secretaria de Expediente; último estado: 22/05/2024 – aprovado o substitutivo”. Já na Câmara, a iniciativa não é “encontrada” ou localizada.