Patrus Ananias recebe em seu gabinete na Câmara dos Deputados a reportagem do grupo RDM. (Foto: Malu Baldoni / Ascom-Patrus Ananias)

ENTREVISTA DA SEMANA | PATRUS ANANIAS

“Falta ao Brasil sentido para a gente afirmar um projeto nacional”

 

A afirmação acima é do ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome nos governos Lula I e II, o deputado federal e ex-prefeito de Belo Horizonte (MG), que durante mais de 60 minutos conversou com a reportagem do grupo RDM sobre diversos temas como orçamento participativo para garantir a sociedade onde os recursos públicos serão aplicados e o futuro da esquerda num mundo cada vez mais conflituoso.

 

A última entrevista da semana deste ano de 2024 é com o deputado federal, ex-ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome nos governos Lula I e II e ex-prefeito de Belo Horizonte (MG), entre os anos de 1993 a 1996, Patrus Ananias (PT-MG). Numa conversa exclusiva com a reportagem do grupo RDM, que aconteceu em seu gabinete e que durou mais de uma hora, entre os mais diversos temas em que foram abordados, o petista – que quase virou padre, mas que preferiu militar na vida política e partidária, depois de conhecer algumas namoradas, afirmou faltar ao Brasil um “sentimento de pátria, de nacionalidade” para que a “gente” possa “afirmar” e exercer “um projeto”  verdadeiramente nacional.

 

Ele lamentou que “boa parte da burguesia brasileira não tem esse “sentimento de pátria, de nacionalidade” como o ex-presidente da França, Charles de Gaulle, “que era um homem mais conservador”, afirmava em suas várias passagens que “uma criança francesa fora da escola” era “um insulto à França”. Para o ex-ministro, “esse sentimento de pátria, de nacionalidade, às vezes, falta o Brasil nesse sentido, para a gente afirmar um projeto nacional, de soberania, de sentir uma certa indignação, uma certa inquietação de saber que nós estamos entre os seis ou sete países mais injustos, desiguais do mundo”, ao mesmo tempo em que o país é a nona maior economia do planeta.

 

Na longa conversa, Patrus Ananias – que encontra-se em seu quarto mandato de parlamentar federal – falou sobre diversos temas como sua luta e seu sonho em fazer com que o orçamento participativo seja adotado no país para garantir a sociedade onde os recursos públicos serão aplicados. Além deste tema em que foi um dos pontos altos de seu mandato à frente da capital mineira na década de 90, o petista abordou ainda os desafios da esquerda democrática num mundo que convive cada vez mais em ambientes de conflitos.

 

“Eu considero que é importante retomar o orçamento participativo. (…) São as pessoas que mantêm o município, os estados-membros e o país, com os impostos, não é? Então é fundamental que as pessoas possam exercer plenamente a sua cidadania. (…) Votar uma vez a cada dois anos é importante, muito. Um voto consciente, cidadão, mas é pouco. Então quem paga impostos, quem gera os recursos, eu penso que tem o direito pleno de discutir as prioridades, onde e como aplicar esses recursos públicos (…) Nós sabemos que os recursos são insuficientes para atender as demandas do Brasil, que acumulou ao longo dos seus 524 anos de história uma dívida social muito alta”, comentou.

 

“Se você aumenta o poder da população, como eu defendo, ampliando o planejamento e o orçamento participativo (…) de alguma forma você estabelece um poder paralelo, um poder, que a meu ver, legítimo, democrático, participativo, mas você limita alguns poderes que são plenos do Poder Legislativo. (…) Eu senti que, mesmo quando eu fui prefeito, a gente já começava a enfrentar uma certa resistência na Câmara de Vereadores. (…) Outra coisa que contribuiu muito também [para esvaziar o orçamento participativo] foi tirar as pessoas dos encontros (…) O celular começou a ser o espaço de decisão. E aí esvaziamos os encontros locais, regionais”, complementou.

 

EDUCAÇÃO

 

Patrus defendeu durante a entrevista que o investimento em educação deve ser o grande projeto de Brasil a ser desenvolvido, oferecendo às crianças e jovens que cursam a escola pública o mesmo conhecimento que é aplicado nas escolas de elite, ao custo de até R$ 10 mil por aluno mês, em modelos pedagógicos montessorianos e outros, adaptados à realidade brasileira.

 

“Eu acho que nós da esquerda, por exemplo, temos uma limitação. (…) penso que nós não demos a devida atenção, acho que é o desafio que nós temos hoje, por exemplo, a questão pedagógica. (…) O que ensinar e como ensinar. Começar pela educação infantil. Começar pelas creches. As crianças bem-nascidas, as crianças ricas, os pais colocam em lugares espetaculares (…) Penso que é possível, não é? É claro que tem que incorporar todos esses montessorianos e outros, mas eu penso que tem que ser uma coisa nossa também, brasileira, sabe? Eu acho que é necessário e é possível. É colocar recursos, priorizar”

 

MARX & JESUS

 

Com sólida formação católica e cristã, Patrus Ananias comentou ainda na entrevista que o atual estágio capitalista, por muitas vezes explicados na filosofia e na ciência política por pensadores como Karl Marx, pode ser muito bem resumido em pequenas parábolas feitas por Jesus de Nazareth.

 

“Eu costumo dizer que o que Marx escreveu em quatro ou cinco volumes, o Capital, Jesus de Nazaré sintetizou em uma ou duas frases primorosas, ‘vocês não podem servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro’”, emendou.

 

DESAFIOS DAS ESQUERDAS

 

Avaliando os desafios das esquerdas no Brasil, o ex-prefeito de BH avalia que “a gente precisa fazer um trabalho político com muita consistência na cidade, para retomar essa hegemonia que nós já tivemos durante muitos anos, e que, por vários motivos, nós perdemos”.

 

ÍNTEGRA DA ENTREVISTA

 

Abaixo, publicamos a íntegra da entrevista concedida pelo deputado Patrus Ananias à reportagem do grupo RDM. Boa leitura!

 

Grupo RDM: Deputado Patrus, o senhor foi prefeito de uma das maiores cidades do país há mais de 30 anos, não?

Patrus Ananias: Eu fui eleito há 32 anos atrás, em 1992.

 

Grupo RDM: Isso, na eleição de 92 até o ano de 1996, não é?

Patrus Ananias: Começamos o mandato em 93, ficamos até o final de 96, porque não havia reeleição naquela época. Mas foi eleito [em 96] o nosso vice-prefeito, o Célio de Castro [então do PSB]. Depois veio o Fernando Pimentel [em 2000], que foi o meu secretário da Fazenda.

 

Grupo RDM: Depois, mais para frente, ele se tornou governador em 2014.

Patrus Ananias: Exatamente.

 

Grupo RDM: Vamos fazer um comparativo. Da época que o senhor foi prefeito, entre 93 a 96, para agora, em 2024, o candidato do PT em Belo Horizonte (MG) foi o deputado federal Rogério Correia, e em 30 anos, mudaram os desafios, ainda, de ser prefeito de uma metrópole como Belo Horizonte, ou ainda os desafios são os mesmos? Quais as diferenças e as semelhanças de ser prefeito naquela época e agora?

Patrus Ananias: Eu penso que muitas questões ainda continuam presentes, sabe? Por exemplo, eu considero que é importante retomar o orçamento participativo. Eu acho uma coisa muito vigorosa, sabe? Iria até, além, em vez do orçamento participativo, estabelecer o planejamento e o orçamento participativo. Quer dizer, as pessoas, as famílias, as comunidades, os regionais da cidade participando ativamente na formulação também das políticas que definem o orçamento, não é? Os planos plurianuais, as Leis de Diretrizes Orçamentárias, não é? Porque eu considero isso fundamental, porque são as pessoas que mantêm o município, os estados-membros e o país, com os impostos, não é? Então é fundamental que as pessoas possam exercer plenamente a sua cidadania. Votar uma vez a cada dois anos é importante, muito. Um voto consciente, cidadão, mas é pouco. Então quem paga impostos, quem gera os recursos, eu penso que tem o direito pleno de discutir as prioridades, onde e como aplicar esses recursos públicos. Nós sabemos que os recursos são insuficientes para atender as demandas do Brasil, que acumulou ao longo dos seus 524 anos de história uma dívida social muito alta, não é? O legado da escravidão. Quer dizer, nós estamos aí entre os seis ou sete países mais ricos do mundo e ao mesmo tempo estamos entre os seis ou sete países mais injustos e desiguais do mundo, não é?

 

Grupo RDM: Aquela expressão da Belíndia que foi criada no Brasil, seria a Belíndia, não é? Dos anos 70. Isso não mudou, não é?

Patrus Ananias: Dos anos 70, exatamente. Então, a questão do orçamento participativo, por exemplo, que foi esvaziada, por diversos motivos, vários fatores e tal. Eu penso que seria uma grande retomada, sabe? Nós deixamos alguns legados que estão muito presentes até hoje. Não teria que fazer o que nós fizemos. Nós construímos em quatro anos 12 escolas municipais em Belo Horizonte, além de reformarmos e ampliarmos dezenas de outras, sabe? Então nosso legado, por exemplo, em algumas áreas, na educação, na saúde, na segurança alimentar, os restaurantes populares, não é? Estão muito presentes, certamente, os investimentos nessas áreas, não é? Algumas áreas que nós investimos muito, que eu mencionei aqui, algumas de educação, saúde, assistência social, segurança alimentar e tal. Já teria um avanço que nós precisaríamos fazer os investimentos, o trabalho intenso que fizemos, porque encontramos realmente uma cidade onde as políticas públicas sociais estavam muito aquém das necessidades e das demandas das pessoas, das famílias, das comunidades e tudo, sabe? Agora, tem um outro aspecto também que é importante registrar, sabe? Belo Horizonte mudou muito do ponto de vista também ideológico, não é? Nós temos que nos recuperar isso, que é um grande desafio para nós. Eu tenho um filho que também é vereador em Belo Horizonte, Pedro Patrus. Para você ter uma ideia, quando eu fui vereador em Belo Horizonte, antes de ser prefeito, fui vereador, também. Nós éramos nove vereadores do PT em 37. E tínhamos outros, assim, no campo da esquerda, como o PCdoB, que por exemplo, tínhamos um vereador esplêndido, não sei se você teve a oportunidade de conhecer, que era o Sérgio Miranda, um ser humano admirável, inteligente e tal. O PSDB do Amilcar Viana Martins, sabe? Então, além dos nossos vereadores do PT, você tinha um bloco grande de progressistas. O presidente da Câmara à época, era do PCB [atual PPS], o Arutãna Cobério Terena. Hoje, meu filho, Pedro, comenta comigo, que são 41 vereadores. O PT tem dois, o PSOL, duas. São, basicamente, os quatro vereadores que têm compromissos com a área social, com as políticas públicas. Enfim, com os pobres, com a justiça social, com o bem comum. Então, a cidade deu uma guinada à direita, sabe? Estou falando para você. O Lula ganhou todas as eleições que ele disputou em Belo Horizonte. Com exceção do ano retrasado, de 2022. O Lula ganhou em 1989, 1994, 1998. As eleições que ele ganhou em 2002, 2006. A Dilma ganhou em 2010. Em 2014, começou. Se não me falha a memória, a Dilma já perdeu em 2014.

 

Grupo RDM: Até porque o candidato era o Aécio Neves. 

Patrus Ananias: O Aécio. É. 

 

Grupo RDM: Até porque BH era a casa do Aécio, não é?

Patrus Ananias: É. Em 2018 a mesma coisa. Mas, mesmo assim, em condições normais, o Aécio, sabe? Houve uma mudança, realmente. Não vamos também entrar nesses detalhes aqui, mas eu acho que é um desafio, hoje, muito grande para nós ganharmos novamente a prefeitura de Belo Horizonte, aumentarmos a nossa bancada de vereadores. A gente precisa fazer um trabalho político com muita consistência na cidade, para retomar essa hegemonia que nós já tivemos lá durante muitos anos, e que, por vários motivos, nós perdemos. E esperamos que a gente retome novamente um patamar mais elevado de presença política na cidade. Em linhas gerais, esse é um quadro complicado que eu estou colocando aqui em Belo Horizonte. Eu penso que algumas questões que nós delegamos foram sendo esvaziadas e isso teve um peso também, sabe? A questão, por exemplo, do orçamento participativo.

 

Grupo RDM: A questão do orçamento participativo é uma coisa que foi transformadora, porque o PT inicialmente trouxe isso. Mas a ideia aqui no Brasil é do PT. Mas no mundo não é. Alguns partidos sociais-democratas, alguns partidos de direita, inclusive da Europa, também praticam esse orçamento participativo. Alguns partidos de comunas no México, realizam isso. Aqui no Brasil ficou muito associado com o PT, porque é o PT, que introduziu em 1990. Mas a direita brasileira, o centro, o centro normal, que muita gente hoje chama de centrão, centro-direita, a própria centro-esquerda, os partidos consorciados ao PT, eles não falam de orçamento participativo, que é colocar a população, definir para onde. Por que isso não houve?

Patrus Ananias: Porque aí entra uma questão do poder. Se você aumenta o poder da população, como eu defendo, ampliando o planejamento e o orçamento participativo, e valendo o próprio orçamento, que eu disse, plano plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias, tem que discutir também os planos setoriais, as políticas públicas específicas, de alguma forma você estabelece um poder paralelo, um poder, que a meu ver, legítimo, democrático, participativo, mas você limita alguns poderes que são plenos do Poder Legislativo. E o legislativo sabe o que representa mexer com dinheiro. O que representa os recursos, não só do ponto de vista político, mas também a questão das emendas. Volta e meia aparece…

 

Grupo RDM: E agora teve o orçamento secreto, a RP9, que era a emenda de relator, recentemente, que foi julgada inconstitucional pelo STF.

Patrus Ananias: Exatamente, exatamente. Então eu senti que, mesmo quando eu fui prefeito, a gente já começava a enfrentar uma certa resistência na Câmara de Vereadores. Como eu saí da Câmara para ser prefeito, tinha uma interlocução muito próxima com a Câmara, um bom diálogo, e também a cidade, os movimentos, as pessoas que participavam do orçamento participativo, que eram milhares de pessoas, que era um processo crescente, começava nas comunidades, nos bairros, ia envolvendo até chegar às regionais da cidade, ia crescendo até as plenárias finais, com quatro, cinco mil pessoas e tudo, de representantes, eles iam também para a Câmara Municipal, de uma forma pacífica, não violenta, mas de uma forma vigorosa também, para cobrar das vereadoras, dos vereadores, que cumprissem o que foi decidido por eles, com o nosso respaldo também, com o apoio nosso e tudo. Então conseguimos avançar. Mas depois eu senti que começou uma certa experiência de Belo Horizonte e algumas outras muito boas, no Brasil.

 

Grupo RDM: Em Porto Alegre.

Patrus Ananias: Em Porto Alegre, com Olívio Dutra, com Tarso Genro, em Vitória.

 

Grupo RDM: Que foram sendo abandonadas pelos demais governos.

Patrus Ananias: Exatamente. Elas foram sendo esvaziadas por esses motivos. Outra coisa que contribuiu muito também foi tirar as pessoas dos encontros, porque a gente fazia encontros, nós estávamos lá nos bairros, encontros locais, encontros regionais, comunitários, pegava as regiões de Belo Horizonte, a cidade dividida em nove regiões, plenárias em nove das regionais, até as grandes cidades, íamos elegendo delegados e todos iam conhecer os representantes em todas as comunidades onde estavam sendo reivindicadas as obras sociais e as políticas públicas. Eu vi, por exemplo, uma coisa que me tocou o coração para sempre, comunidades abrindo mão de reivindicações justas, legítimas, em função de outras demandas mais dramáticas.

 

Grupo RDM: Mais urgentes.

Patrus Ananias: Mais urgentes, porque elas conheciam a realidade e tudo. Então, o plenário era muito importante também. Com o advento.

 

Grupo RDM: Do celular.

Patrus Ananias: O celular começou a ser o espaço de decisão. E aí esvaziamos os encontros locais, regionais, até os grandes encontros da cidade mesmo, as plenárias municipais. Foi outro fator também que contaminou muito, sabe?. Acho que o encontro das pessoas também é fundamental num momento como esse. É um orçamento participativo, é democrático, a discussão dos problemas da cidade e tudo. Então, foram esses fatores. Mas acho que a maior dificuldade que sinto é a questão de como estabelecer uma relação correta entre essa participação popular efetiva, cidadã, com a decisão mesmo. E, ao mesmo tempo, com o Poder Legislativo. O Poder Legislativo tem que abrir mão de algumas prerrogativas que são muito caras do ponto de vista do manejo do dinheiro.

 

Grupo RDM: Até porque nos Estados Unidos, que é o país que é considerado pela extrema-direita, pela direita tradicional, mas hoje pela extrema-direita, como uma área a ser seguida, até pelo ex-presidente, é importante frisar que os americanos além de votar nos candidatos, eles participam das questões das cidades, nos orçamentos das cidades, nos orçamentos dos estados, do próprio governo federal, eles votam nas eleições a questão do orçamento, se o dinheiro vai ser remanejado para a saúde, para a educação, isso também vai para a cédula eleitoral.

Patrus Ananias: Não tinha conhecimento que era assim. Os Estados Unidos tem muito isso. Os estados têm uma legislação também bem alargada em cada um deles. Tem muitas normas jurídicas que são mais estaduais, porque os estados gozam de autonomia lá maior que nós gozamos aqui no Brasil.

 

Grupo RDM: E esse ponto, que seria interessante eles copiarem, eles não copiam

Patrus Ananias: Copiam outras questões mais… O que diz respeito à democracia, à participação, não, não é?

 

Grupo RDM: Agora, essa mudança que você falou da guinada à direita em Belo Horizonte, no conglomerado urbano da grande BH, e voltando aqui, a sua formação, que é religiosa, católica. O senhor teve até um certo depoimento numa palestra do Leonardo Boff, acho que ano passado, que o senhor falou que quase virou padre. Não virou padre, mas virou político. Como foi isso?

Patrus Ananias: Eu tive um momento que eu considerei mesmo a possibilidade de ir para o seminário nos meus 16, 17 anos, aí encontrei umas namoradas e aí mudei de ideia.

 

Grupo RDM: Mas aí continuou tendo a formação religiosa por causa da política, não é?

Patrus Ananias: Sim, sem dúvida.

 

Grupo RDM: E o Brasil era muito católico, anos 70, anos 80, anos 90 também muito católico, mas a partir dos anos 90 começa a haver um movimento de transformação da sociedade brasileira. Isso aconteceu com Belo Horizonte, aconteceu no Brasil, um pouco menos na região Nordeste, mas no Sul, no Sudeste, aqui em Brasília, ocorreu muito isso. De uma migração da sociedade, sobretudo das sociedades periféricas, que foram abandonando as igrejas católicas por vários motivos e que foram migrando para igrejas que antigamente eram denominadas protestantes e que hoje são denominadas evangélicas. Isso contribuiu com o processo desta guinada à direita?

Patrus Ananias: Vamos fazer um resgate histórico para a gente contextualizar isso devidamente. Eu venho de uma família católica tradicional, uma família católica, vamos dizer assim, no velho estilo. Mas na minha infância eu sempre tive um interesse maior pelas coisas, de ler, de… Na minha infância, adolescência, exercendo a minha religiosidade familiar, eu… A igreja católica teve um papa, que antecedeu o papa Francisco, que foi uma figura extraordinária, que foi o papa João XXIII. E aí veio a convocação do concílio ecumênico do Vaticano II. O papa fez isso no início dos anos 60, na minha infância, no início da minha adolescência. E aquilo começou a me despertar um certo interesse também pelas mudanças da igreja, por João XXIII, as encíclicas sociais, os documentos dele, e o movimento aqui na Igreja do Brasil. Então, na minha juventude vieram mesmo, minha militância, comunidades eclesiais de base, pastorais da juventude, as leituras relacionadas com a teologia da libertação. Então eu tive uma formação, e depois me aproximei também de pessoas, pensadores católicos, que me marcaram profundamente. Alceu Amoroso Lima, professor Edgard da Mata Machado em Minas Gerais, pensadores cristãos com um foco social vigoroso, grande e tudo. Na juventude, aproximei de pessoas como Leonardo Boff, Frei Betto, Dom José Maria Pires, Dom Helder Câmara. Então, a minha formação se deu muito por aí mesmo. Estudei muito filosofia cristã, católica, numa linha ecumênica, porque me abri muito também. Pessoas que me marcaram muito na juventude foram duas pessoas. Um não era cristão, que era o Mahatma Ghandi, a questão da não violência, e o outro nos Estados Unidos, o pastor Martin Luther King. Mas eu me lembro bem, na minha juventude ainda, no final dos anos 1970, eu me lembro que eu li um texto, eu não tenho mais o autor, sabe mesmo, de alguém que dizia isso, que estava tendo um movimento para frear o processo aqui da Igreja do Brasil, relacionado especialmente com as comunidades eclesiais de base, as pastorais, pastoral das favelas, pastoral operária, pastoral da juventude, um movimento bonito, muito forte.

 

Grupo RDM: Até onde fundou o PT, ajudou muito.

Patrus Ananias: Exatamente. Então eu tenho para mim que muito desse movimento de direita, que hoje inclui também setores da Igreja Católica, que não são só os evangélicos, tem evangélicos unificados contra a esquerda, mas eu penso que o movimento é bem pensado pela direita, a partir dos Estados Unidos. E nós, da esquerda democrática, sendo esquerda, compromisso com a vida, com os direitos fundamentais, o sonho, a perspectiva de um socialismo democrático, que efetivamente respeite e promova os direitos humanos, os direitos fundamentais, o respeito às diferenças, aos diferentes, nós nos demos devida atenção a isso. Um autor francês que eu tenho lido muito ultimamente, o [Thomas] Piketty, ele trabalha isso, ele chama atenção para esse aspecto, para essas questões. A direita começou a se articular com muita força logo depois da Segunda Guerra. A gente achava que a esquerda estava consolidando e ganhou mais raiz nos anos 60, 70, com a escola de Chicago, por exemplo. E ele chama atenção para isso, de setores de direita que começaram a se… E pelo mundo também. Na Igreja Católica, houve uma onda muito grande, nós tivemos também o pontificado do Papa João Paulo II, uma linha mais conservadora. Eu dou desconto ao João Paulo II, porque ele veio da Polônia. 

 

Grupo RDM: Que ele viu o outro lado da cortina de ferro?

Patrus Ananias: Uma ditadura também, que não tinha nada… Terrível.

 

Grupo RDM: Que perseguia…

Patrus Ananias: Nem foi uma revolução, foi uma ocupação mesmo, no pós-guerra. Uma ditadura mesmo. Então ele tinha esse lado. Eu acho que ele não capturou bem o outro lado também, no sentido. Mas o fato é que o pontificado dele, que eu faço essa relação, eu acho que, do ponto de vista pessoal… E ele deixou algumas encíclicas também positivas, do ponto de vista social, em relação aos direitos dos trabalhadores, das pessoas mais empobrecidas, da perspectiva da justiça social. Mas o processo aqui no Brasil foi muito ruim. Com o esvaziamento total dessa igreja mais progressista. Que tinha referência em nomes como o Dom Paulo Evaristo Arns, em São Paulo; Dom Helder Câmara, em Recife; Dom José Maria Pires, na Paraíba. Eu conheci muito também um extraordinário, Dom Fragoso, lá nos sertões de Ceará, em Crateús. Dom Pedro Casaldáliga. Esses bispos, arcebispos, cardeal, como Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Aloísio Lorscheider. Eles não tinham… Os sucessores foram sempre colocados fora de qualquer participação efetiva deles. E, via de regra, foram substituídos por pessoas de direita. E não tinham essa visão. 

 

Grupo RDM: Holística?

Patrus Ananias: Exatamente. Não tinham essa visão contra todas as ditaduras, nesse sentido. Eram contra única e exclusivamente as ditaduras comunistas. Então, houve, de fato, um empobrecimento da igreja muito grande, nesse sentido. O esvaziamento das comunidades eclesiais de base. E também um momento de vocações religiosas. Acho que também decresceu as questões religiosas. Algumas posições que a igreja mantém, essa questão do celibato. Outras questões também afastaram muito a juventude. Houve, a meu ver, padres religiosos extraordinários na minha juventude. Inteligentes, cultos, abertos. E que me ajudaram muito a abrir horizontes, leituras. Jacque Maritain, Emanuel Munier, padre Lebret e tal. Com 17 anos, eu conheci o Alceu Amoroso Lima, o doutor Alceu. Na mesma época, conheci o professor Edgard. Houve um retraimento, nesse sentido. Eu me lembro que um padre notável em Belo Horizonte, chamado Alberto Antoniazzi, um italiano, veio da Itália. Ele falou comigo. ‘Eu fui padre quando Paulo VI, era bispo lá em Milão’, ele falou comigo. Ele já teve um problema de doença, antevendo um pouco o fim dele. ‘Eu falei, vocês vão ter uma geração de padres muito empobrecidos do ponto de vista intelectual e ético’. Nós estamos vivendo um pouco na Igreja Católica hoje. Tem pessoas notáveis, sempre tem. Como a gente tem fé, o Espírito de Jesus vai navegando. Mas houve um empobrecimento realmente grande, nesse sentido, do ponto de vista intelectual, de abertura, de diálogo com outras correntes religiosas, de diálogo mais alargado com a própria tradição cristã. Não podemos esquecer que a grande referência nossa, que é Jesus, deixou seu legado há mais de dois mil anos atrás. Isso implica também uma leitura permanente. Me faz lembrar um diálogo que um bispo me contou no concílio ecumênico João XXIII. Chegou um bispo mais conservador e perguntou, ‘mas santidade, nós estamos mudando a mensagem de Jesus, o evangelho?’. E João XXIII falou, ‘não seu bispo, a mensagem de Jesus que está escrita é permanente. O que muda é a nossa compreensão sobre ela. A nossa leitura, o que muda é a nossa capacidade de interpretar o contexto histórico em que estamos vivendo. Houve realmente um empobrecimento. Eu continuo muito fiel à minha formação cristã. Vou dizer mesmo, cristã católica, onde me formei e onde encontrei pessoas realmente admiráveis e onde não só me formei religiosamente, me formei politicamente também, com leituras de autores brasileiros, franceses, dos Estados Unidos, religiosos, que me marcaram profundamente. Não sei se você conhece, por exemplo, esses autores franceses que eu mencionei, o Jacques Maritain, o Manuel Mourier, então eles me marcaram muito. Então estou muito fiel a esse legado, é claro que buscando também novos horizontes, questionar aberto também, como eu disse, achei admirável o Papa Francisco, na última encíclica social dele, ele termina prestando homenagem ao Gandhi e ao Martin Luther King. Então tem uma perspectiva, eu acho que o legado de Jesus é um legado muito poderoso, que vai atravessar os tempos.

 

Grupo RDM: Sim, mas essa transformação do Brasil nos anos 70, 80, 90, para agora, do Brasil católico para o Brasil pós-católico, seria protestante? Antigamente tinha essa denominação, hoje são evangélicas, de fé pentecostal, neopentecostal, algumas até, o Leonardo Boff até faz um alerta sobre a teologia do domínio que querem propagar aqui, algumas dessas igrejas querem propagar a teologia do domínio. Essa transformação ajuda a explicar esse caldo cultural brasileiro, essa mudança?

Patrus Ananias: Eu volto ao Piketty, eu penso que a direita, nós não demos a devida atenção à direita, essa questão religiosa é um dado, mas tem outros, é isso, a direita começou a se organizar nessa perspectiva de uma direita mesmo, alguns um pouco mais razoáveis e outros uma perspectiva mais ditatorial mesmo, autoritária, mas um pensamento muito conservador em todos os sentidos, no campo moral, religioso, no campo econômico, social, no campo cultural e tudo mais, então eles chamam atenção para isso, a escola de Chicago, a eleição, duas eleições que nós não demos a devida atenção, o Ronald Reagan nos Estados Unidos e durante 18, 19 anos a Margaret Thatcher governou a Inglaterra, dois atores de alta, de muita força de direita, então a direita começou e nós não demos a devida atenção, e veio em 1989 a queda do muro de Berlim, a explicação de muitas contradições realmente do comunismo, a dissolução do União Soviética, a explicação dessas questões relacionadas contra a democracia, contra os direitos humanos, contra os direitos fundamentais nos países comunistas, e o pensamento de esquerda entra em crise, nesse sentido, eu considero que a esquerda mais radical, sobretudo os comunistas, colocaram temas que realmente assombraram muito, eu falo, inclusive, para minha família, meus avós, meus pais, eu estou notando aqui, por exemplo, primeiro, abolir Deus e a religião, o Estado ateu, depois, abolir totalmente a propriedade privada, então, cadê a sua propriedade, a sua casa, seu apartamento decente, a sua propriedade rural decente também?

 

Grupo RDM: E isso alimenta hoje o discurso da extrema-direita…

Patrus Ananias: Exatamente. Aí veio a questão da propriedade, a questão do Estado, aquela coisa do Marx também, então há algumas questões que o socialismo real, especialmente o comunismo na sua prática, mas algumas ideias também teóricas relacionadas com o marxismo e tudo, um marxismo mal digerido, mal lido, deixou muitas marcas, facilitou a ação da direita, nesse sentido. E o capitalismo veio com muita… a queda da União Soviética, o capitalismo, um autor, que eu esqueço o nome dele, falou que o capitalismo era a última etapa, o capítulo final da humanidade. Durar não sei quanto tempo, essa ideia do liberalismo econômico. Então eu vejo muito por aí também. É um contexto histórico que eu acho um grande desafio para a esquerda. Achei importante o que aconteceu na Inglaterra, mais importante ainda o que aconteceu na França, mostra que a esquerda não morreu, que os ideais do socialismo democrático, de uma esquerda democrática comprometida com a vida, com a dignidade humana, pode ter presença ainda. Eu penso que aqui no Brasil nós temos esse desafio de pensarmos nesse momento que realmente nós queremos para o Brasil. Eu tenho trabalhado muito nisso. Nós constituímos aqui a Frente Parlamentar em Defesa da Soberania. Eu estou aí, eu volto com meus textos, eu sei que eu vou fazer um texto sobre a questão do Projeto Nacional Brasileiro. Nessas minhas reflexões, eu considero a educação uma coisa fundamental, desde a educação infantil, desde as creches. Eu penso…

Grupo RDM: Dentro do projeto do Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, das escolas em tempo integral?

Patrus Ananias: Vou te mostrar um texto que eu fiz sobre educação.

 

Grupo RDM: Paulo Freire?

Patrus Ananias: Eu acho mais importante, eu tenho maior apreço pelo Paulo Freire. Admiração, conheço bem a obra dele. Inclusive eu fiz um trabalho sobre educação, voltei lá, em Pedagogia do Oprimido, Educação como Prática da Liberdade. Mas o Paulo Freire não foi um pensador da escola. Ele foi um pensador, um ator da educação popular, que é o seu espaço.

 

Grupo RDM: Que resolveu uma questão em que as pessoas não tinham acesso à leitura e precisavam ter.

Patrus Ananias: E uma alfabetização altamente politizadora, no sentido positivo. Quem pensou realmente em escola foi o Anísio Teixeira. Em boa parte, o Darcy Ribeiro. Que é pensar Escola. Eu acho que nós da esquerda, por exemplo, temos uma limitação. Nós defendemos o que é muito justo, é fundamental. Nós estamos sempre defendendo as categorias. Defendemos com muita justiça, melhores salários, melhores condições de trabalho, maior respeito para as professoras, professores e todas as pessoas que trabalham nos projetos pedagógicos, nas escolas e tudo. E penso que nós não demos a devida atenção, acho que é o desafio que nós temos hoje, por exemplo, a questão pedagógica. Os conteúdos curriculares. O que ensinar e como ensinar. Começar pela educação infantil. Começar pelas creches. As crianças bem-nascidas, as crianças ricas, os pais colocam em lugares espetaculares.

 

Grupo RDM: Escolas montessorianas.

Patrus Ananias: Exatamente.

 

Grupo RDM: Mas é possível colocar, fazer um projeto pedagógico montessoriano na escola pública? Porque a escola montessoriana é cara, não é? Os ricos que estudam na escola montessoriana pagam mensalidades aí de R$ 3 mil, R$ 4 mil, R$ 5 mil, R$ 6 mil, até R$ 10 mil.

Patrus Ananias: Eu penso que é possível, não é? É claro que tem que incorporar todos esses montessorianos e outros, mas eu penso que tem que ser uma coisa nossa também, brasileira, sabe? Eu acho que é necessário e é possível. É colocar recursos, priorizar, sabe? Quando nós começamos, eu fui ministro do presidente Lula, ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, nós entramos pela liderança do Lula, que é uma figura extraordinária, nós entramos para resolver a questão da fome no Brasil. O Ministério recebia e tinha recursos para isso, sabe? Como que for mesmo.

 

Grupo RDM: Até porque era o objetivo do presidente Lula.

Patrus Ananias: Exatamente. Então, é claro, não dá para fazer tudo, mas eu penso que um grande desafio no Brasil hoje, garantindo, é você fazer um investimento vigoroso, forte mesmo, na educação pública. Eu estou insistindo muito, tem um projeto, mas não anda, que é do Sistema Nacional de Educação, que é o nosso fazendo de educação, que foi feito com o SUS, por exemplo. Ele é um sistema que integra as ações do governo nacional, governos estaduais, governos municipais, participação da sociedade, por exemplo, educação… 

 

Grupo RDM: É uma articulação da política pública de educação?

Patrus Ananias: Claro. Educação infantil, por exemplo, que é o ponto de partida, não é? Você já colocou aí. Começa a estabelecer a diferença entre os que podem e os que não podem, não é? Em uma sociedade democrática, tem que estabelecer um patamar comum, não é? Segurar todas as crianças e jovens um patamar comum de direitos e oportunidades, não é? Então, a… A educação… Estou falando aqui, a educação… A questão da educação infantil, né? Educação… É entrar para resolver. Se o município não faz, o governo federal vai lá e faz. E resolve.

 

Grupo RDM: Coloca o dinheiro.

Patrus Ananias: Coloca o dinheiro e faz a conta própria. Nesse debate da educação, por exemplo, é interessante, né? Você tocou… O Darcy Ribeiro… O Darcy Ribeiro, ele defendia que o Estado Nacional, o Estado Federal, tomasse conta de toda a educação. O Anísio Teixeira… Não, o Anísio Teixeira defendia descentralização. Educação dos estados, dos municípios, né? E o Darcy falava… O Anísio, eu concordo um pouco. Buscou um equilíbrio entre os dois, né? O Darcy, que era muito amigo dele, conta nas memórias dele, falando… ‘Ô, Anísio, você não conhece bem o interior do sertão do Brasil, como eu conheço’ e tudo, brincava com ele, sabe? O problema é que nos municípios, o coronelismo tem uma força enorme. Então, você garantiu uma escola pública de qualidade desde… Naquele tempo não se falava em educação infantil ainda, não é? Era mais a partir do antigo curso primário, não é? O ensino fundamental hoje. Mas essa questão está posta, sabe? Eu acho que tem que fazer… Eu não sei por que esse projeto não anda aqui. Esse projeto que institui o Sistema Nacional de Educação. Que já está com a urgência aprovada. Para mim, o ideal seria, o correto seria o Plano Nacional de Educação ser aprovado a partir das diretrizes de um Sistema Nacional de Educação. Isso parece um sistema, integrando o governo federal, os governos estaduais, os governos municipais, qual a responsabilidade e tal. Agora, por outro lado, concluindo o raciocínio aqui, à medida que eu vejo que a educação é uma política pública especial, hoje ela ocupa um lugar muito forte nas minhas leituras, estudos, reflexões, nessa questão da soberania nacional, do projeto nacional brasileiro, é o mesmo tempo… Porque a educação trabalha em dois níveis. É o mesmo tempo que é o direito fundamental da pessoa, desde a infância, a educação infantil, era um valor também fundamental para qualquer projeto comunitário, coletivo. Nós não podemos pensar as nossas cidades, os nossos estados, e muito menos pensar o Brasil sem educação. Educação alargada, ligada à cultura, à pesquisa, desenvolvimento tecnológico, científico, para o país avançar nesse campo e tudo. Agora, por outro lado também, eu quero concluir meu raciocínio sobre isso e deixando isso. A educação pressupõe também as demais políticas públicas, tem que haver uma boa integração das políticas públicas, porque sem saúde ninguém aprende. Sem uma alimentação adequada e saudável também ninguém tem saúde, e ninguém tem saúde também se não tiver um meio ambiente saudável, água potável, moradia digna, decente. Então eu penso que há uma integração nesse sentido de o Brasil ter que fazer uma ação muito vigorosa. Nós começamos a fazer isso nos dois primeiros governos do Lula, nós começamos a fazer isso com muita intensidade. Agora, é preciso retomar isso, por educação no centro e as demais políticas públicas convergindo, para dar condições para que as crianças pobres, os jovens pobres e as suas famílias tenham condições realmente de… Porque, a meu ver, um Estado democrático sério estabelece um patamar comum de direitos e oportunidades. Aqui na cama tem deputado querendo voltar com os institutos federais para as escolas técnicas. Eu tenho colocado isso também. Em época de eleição todo mundo fala em educação. Agora está ficando claro para mim que a educação enfrenta resistências, porque se você for fazer uma educação, como nós estamos colocando aqui, como estou falando, você estabeleceria uma mudança de paradigma nas relações sociais.

 

Grupo RDM: Uma ação da civilização brasileira, não é?

Patrus Ananias: Claro, exatamente. Você estaria dando às crianças pobres os mesmos direitos e oportunidades que têm as crianças bem-nascidas. E acho que uma sociedade democrática tem que caminhar para isso. Claro que não vamos fazer isso no dia seguinte, mas temos que começar a trabalhar vigorosamente para chegarmos lá. 

 

Grupo RDM: Agora, o senhor falou do novo estágio do capitalismo, dessa questão do Piketty. Vou transformar duas perguntas em uma. É mais ou menos assim. Nós estamos vivendo um momento em que alguns pensadores e economistas dizem que avaliam que nós estamos no final da passagem, dessas crises cíclicas do capitalismo. Alguns dizem que é o final de passagem do capitalismo para um novo sistema. O ex-ministro da Grécia, da Fazenda, veio até intitular dizendo que nós estaríamos já vivendo o berço do tecnofeudalismo. O capitalismo já estaria voltando para o feudalismo, só que agora com base no tecnofeudalismo. Atrelado a isso, nós estamos vivendo a questão do avanço do neofascismo, da IA, da inteligência artificial, do modelo autônomo de desenvolvimento de tecnologias. Por exemplo, os carros estavam se desenvolvendo completamente autônomos, não havia ninguém dirigindo. Só que aí aconteceu alguns acidentes, aí seguraram. E agora estão fazendo um aprendizado de máquina para que isso não se repita. Mas eles querem colocar isso no mercado. Então isso vai ser uma transformação, porque vai acabar com o motorista de aplicativo, que hoje é uma das profissões que foram precarizadas. Além disso, a questão das mudanças climáticas. Tudo isso aí é um combo de perguntas. Nós estamos caminhando, nesse cenário todo, nós estamos caminhando para um cenário distópico, de distopia, como algumas séries do Netflix e algumas outras mostram. Ou nós podemos caminhar por caminhos utópicos, por um socialismo, a humanidade caminhando para uma sociedade cooperativa?

Patrus Ananias: Eu penso que nós estamos vivendo em uma sociedade conflitiva. Tem esses projetos que você está colocando, mas é uma sociedade conflitiva. Nós temos presente uma direita, que eu convivo aqui na Câmara dos Deputados, e convivo especialmente no dia a dia lá na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Nós temos uma direita agressiva, nenhuma abertura ao diálogo, à busca de consensos, à construção de espaços comuns, muito sectária, intolerante, e que não está só no Brasil. Nós estamos vendo na Argentina, estamos vendo no Equador, estamos vendo em El Salvador, a possibilidade de voltar nos Estados Unidos, avanços na Europa. Tivemos agora esses bons resultados nacionais, especialmente na França, em parte também na Inglaterra. Não sei muito bem qual o líder trabalhista lá que ganhou. Tem um quadro também bom na Espanha, nos países. Mas a direita está muito presente. E é uma direita realmente, a meu ver, com fortes características fascistas, de intolerância. Aqui no Brasil, por exemplo, o pessoal da direita usa muito o slogan do integralismo. Eles acrescentam a liberdade. É Deus, Pátria, Família e Liberdade. E o slogan do integralismo no Brasil era Deus, Pátria e Família. Então é Deus, Pátria, Família e Liberdade. Agora a liberdade, às vezes, é para eles. A liberdade é fake news. A liberdade é mentira. O engodo. Então tem uma direita realmente… Há um quadro também no mundo tenso, mundial. O que Israel está fazendo em Gaza é uma coisa assombrosa. Apreço que eu tenho pela tradição judaica. Está também muito nas minhas raízes. A guerra da Rússia com a Ucrânia. A Europa voltou a se armar. Eles estão com gastos de armas que eles não tinham desde a 2ª Guerra Mundial. A OTAN – a Organização do Tratado do Atlântico Norte.

 

Grupo RDM: A guerra comercial dos chineses com os Estados Unidos.

Patrus Ananias: Bem lembrado. Isso exatamente. E o que está acontecendo na África. Mesmo aqui na América Latina também.  A questão da migração, por exemplo, dos Estados Unidos, passando pelo México. Outra eleição positiva foi no México. Outro sinal positivo para a gente lembrar também. Por outro lado, tem os sinais positivos. As forças do bem, vamos dizer assim. As pessoas comprometidas com a vida realmente. Com o bem comum. Com o diálogo. Com a democracia alargada. Estão presentes esses resultados positivos que nós já mencionamos. E tem também esse trabalho. De base. Estamos tomando como força. A gente precisa lembrar sempre que o mal, a violência, o mal é escandaloso. Passagem do grande Sertão Veredas, do Guimarães Rosa. O grande Sertão Veredas fala que o diabo e as brutas saibam bem do prato. E Deus faz na lei do mansinho. As pessoas que praticam bem, que trabalham em perspectiva de sociedades melhores, mais humanizadas, mais fraternas, são pessoas silenciosas. E infelizmente os meios de comunicação dão destaque só ao que é ruim. Violência, morte. Alguém conversou comigo. Uma pessoa passa a vida inteirinha fazendo o bem. Correto. Desde a infância. Bom filho ou boa filha. Boa irmã ou boa irmão. Fraternidade com as pessoas próximas. Bom ou boa colega. Depois cresce. Bom profissional. Correto. Casa. Bom pai. Boa mãe. Bom marido. Boa esposa. Corretíssima. Certa pessoa não vê isso de jeito nenhum. Correta. Paga seus impostos direitinho. Respeita a lei. Ajuda os mais pobres. Vai na periferia no final de semana para ajudar as pessoas. Nada. Se essa pessoa dá uma fraqueza e faz uma besteira, vira notícia. Então o mal é isso. Aparece muito. Então eu sinto também, que tem muita gente bonita e boa trabalhando, fazendo o bem, reunindo, encontrando. Agora mesmo nesse período pré-eleitoral, depois no período eleitoral, eu quero andar muito, conversar muito, porque a gente viaja no interior de Minas, encontra pessoas belíssimas. E as pessoas ficam… Agora o mal é isso. Apronta muito.  Então eu vejo uma sociedade onde o bem e o mal estão em labuta, como sempre estiveram, de uma forma mais visível agora. Porque as forças da direita, de uma direita que eu insisto em dizer agressiva, violenta, estão muito presentes. Então é uma sociedade em conflito. E eu espero que esses conflitos sejam processados pacificamente, democraticamente, que a gente vá encontrando os melhores caminhos através da democracia e de processos eleitorais.

 

Grupo RDM: Agora vamos falar da sua gestão no Ministério dos Movimentos Social, lá atrás, no primeiro governo Lula. O senhor já contou que o presidente tinha como objetivo acabar com a fome e isso realmente foi feito. O Brasil saiu do mapa da fome acho que na última década, em 2012. Uma década depois do seu ministério, o Brasil completa o ciclo e sai.

Patrus Ananias: Não chegou a uma década, estivemos no Ministério até 2010. Dois, três anos depois.

 

Grupo RDM: Três anos depois, aí fechou o ciclo.

Patrus Ananias: Exatamente.

 

Grupo RDM: Aí houve esse retrocesso. A questão da Lava Jato, a questão daquelas pautas populares de 2013, Lava Jato, na sequência, aí vem a polarização Aécio-Dilma. O Aécio, como é que é um político de Minas, fazer uma pergunta aqui para o senhor, sobre o Aécio Neves. Ele não reconheceu a derrota em 2014. Isso foi a antessala do que aconteceu?

Patrus Ananias: Eu não gosto de avaliar pessoas, fazer análise das pessoas, não. Eu gosto de trabalhar com as situações políticas, econômicas, sociais, os desafios. Não me cabe julgar as pessoas.

 

Grupo RDM: Mas esse gesto dele?

Patrus Ananias: Concretamente, em 2014, a Dilma ganhou eleição em 2014.A reeleição. Ela ganha a eleição, mas já assume bem fragilizada com a postura aqui do Congresso. Eu tenho uma boa relação com o Aécio Neves, de conversar, de muitos anos.

 

Grupo RDM: A boa relação do cafezinho com pão de queijo?

Patrus Ananias: A gente brinca que lá em Minas as ideias disputam, as pessoas dialogam, conversam. Mas eu penso que realmente a postura dele em 2014, já na campanha e depois aqui na Câmara, juntando-se com outras pessoas, assumiu uma linha vigorosa, claramente golpista, que contribuiu muito para o golpe que levou o impeachment da Dilma, que foi um golpe, tanto que ela não teve nenhum cerceamento dos seus direitos políticos e da sua vida pessoal. Nada e nada contra ela.

 

Grupo RDM: E que depois provaram que não tinha.

Patrus Ananias: Exatamente, pois é. Então eu considero que foi realmente um golpe para um retrocesso muito grande no Brasil. E eu faço essa leitura, que a direita, essa direita que está hoje muito presidente do país, começa exatamente nesse processo. Nós não entendemos muito bem ainda, temos que avaliar um pouco mais o que aconteceu em 2013, aquelas manifestações que a gente acha. Mas em 2014, a eleição da Dilma já nesse processo muito tensionado. Depois vem o golpe e o afastamento da Dilma. Aí assume o vice dela e aí inicia o processo da direita. Já com a reforma, a deforma, a reforma trabalhista, desmontes dos direitos trabalhistas, sindicais, etc. Começa nesse sentido, depois perde a comissão especial aqui na Câmara, depois a eleição do Bolsonaro, com seus desobramentos muito tristes e perversos. Eu entendo que o poder econômico tem uma presença muito forte nesses momentos. O poder econômico tem uma presença muito forte na história humana. Eu costumo dizer que o que Marx escreveu em quatro ou cinco volumes, o Capital, Jesus de Nazaré sintetizou em uma ou duas frases primorosas, ‘vocês não podem servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro’. O dinheiro realmente tem um poder relevante, as pessoas devem ter uma vida digna, decente, o dinheiro é uma coisa razoável para ter uma vida decente, acesso, inclusive isso, acesso à cultura, aos livros, ao lazer, à música, às artes, estudo de boa qualidade, livros. Mas quando ele passa a ser, deixa de ser um instrumento e passa a ser um fim, como nós estamos dizendo hoje nesse capitalismo selvagem, é um horror. De muitas pessoas poderosas agindo rigorosamente em torno dele. E no Brasil fica mais irado ao meu ver, que nós não temos uma burguesia brasileira. Você pega a Revolução Francesa, quem fez a burguesia francesa? Você pega a Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, a burguesia dos Estados Unidos. O nosso processo de independência, com as suas contradições, Dom Pedro I, e tal. E nós não temos uma…

 

Grupo RDM: O filho, Dom Pedro I, se tornando independente do pai, Dom João VI.

Patrus Ananias: E a questão com o país muito ligado a esse legado também muito perverso da escravidão, a escravidão ligada com o latifúndio, com o patriarcado, o machismo, o coronelismo, o mandonismo nas regiões e tudo. Então tudo isso contribui de uma maneira bem negativa para a gente afirmar um projeto nacional brasileiro. Você pode contar nos dedos, eu estava pensando, alguns empresários muito interessantes, Mauá, Roberto Simons, nos anos 20, 30, José Alencar Gomes e Silva, eu conheci… Agora, há uma boa parte dos empresários brasileiros, Darcy Ribeiro trabalha isso bem, antigamente eram os olhos voltados para Paris, agora os olhos voltados até Miami, Nova York. Então, uma boa parte da burguesia brasileira não tem esse sentimento de pátria, de nacionalidade, sabe, de projeto nacional, de soberania do país, de sentir uma certa indignação, uma certa inquietação de saber que nós estamos entre os seis ou sete países mais injustos, desiguais do mundo.

 

Grupo RDM: Ao mesmo tempo que é a oitava maior economia.

Patrus Ananias: É. Eu li, por exemplo, uma biografia do general Charles de Gaulle, que era um homem mais conservador, tem várias passagens lá, uma delas é isso, uma criança francesa fora da escola é um insulto à França. Então, esse sentimento de pátria, de nacionalidade, às vezes, falta o Brasil nesse sentido, para a gente afirmar um projeto nacional.

 

Grupo RDM: Mas das elites, não é?

Patrus Ananias: É. E é uma burguesia também muito dependente. Ela depende do Estado e fica contra o Estado, eu não entendo isso não. O Estado faz, o Estado implementa a Cemig, uma coisa notável em Minas, admirável. O Estado faz isso, o Estado faz o Banco do Brasil, que cumpre um papel fundamental no país, a Caixa Econômica Federal na área da habitação, moradia, foi o nosso instrumento para realizar o Bolsa Família, levar os recursos para as famílias, os pagamentos e tudo. Depois que o Estado faz, eles querem privatizar. Você pega os Estados Unidos, por exemplo, o transporte ferroviário nos Estados Unidos, ele pega e faz. Aqui no Brasil, as empresas hoje estão usando, a Vale, inclusive, com os atentados trágicos de Mariana e Brumadinho, a Vale tomou posse de uma rede ferroviária de Belo Horizonte até o Porto de Vitória (ES). Aquilo foi feito pelo Estado. Aquilo já existia. Fazia parte da rede ferroviária brasileira. Então, é isso que a gente tem que aceitar um pouco mais nessa questão de a gente afirmar um projeto de país e definir um pouco mais com clareza qual o lugar da nossa burguesia. Eu acho um grande desafio para nós nesse sentido, para a gente ir superando esse impasse, é nós pensarmos um projeto nacional, dentro do projeto nacional, o desenvolvimento regional. O Brasil é um país continental, e é um país muito desigual, no sentido bom da palavra, um país muito rico nas suas riquezas culturais e regionais, na sua diversidade cultural, regional e tudo. Então, eu tenho estudado isso, sem pensar as micro, meso e macro-regiões brasileiras, que têm características comuns, características históricas, geográficas, ambientais, culturais, econômicas, e promover o desenvolvimento dessas regiões, a partir sobretudo das suas próprias potencialidades, dos seus recursos naturais e humanos, das suas vocações, e ver se nesse contexto a gente vai formando também, até o ponto de vista de formação acadêmica, pequenos e médios empreendedores com uma formação um pouco mais nacional, com uma sensibilidade social mais alargada e ambiental também. Eu penso muito nisso, nessa ideia da gente… Porque o capital estrangeiro, que nós estamos dependendo hoje totalmente, ele cumpre um papel, mas o Brasil não pode ficar dependendo sempre deles, a nossa própria economia. Não consigo entender, por exemplo, porque lá não tem uma faculdade nossa de automóveis? Na minha infância já tinha a FNM [Fábrica Nacional de Motores]…

 

Grupo RDM: Lá atrás os militares tentaram, mas não deu certo.

Patrus Ananias: O país tem que ter algumas travas aí, nesse sentido. Eu li também na minha juventude, vou até relembrar agora, um livro que me marcou muito, um livro do Barbosa Lima Sobrinho, um grande brasileiro, nacionalista, democrático, ‘Japão, o capital se faz em casa’. O país tem que buscar esse recurso, buscar formar sua… Não vamos defender um Estado poderoso, mas que o Estado tem o seu lugar, tem o seu espaço, no sentido das políticas públicas, promover o bem comum e alguns setores que eu acho que tem que ser do Estado. Energia elétrica, por exemplo, tem que ser do Estado, na minha opinião. Isso aqui é um bem fundamental.

 

Grupo RDM: Como é nos Estados Unidos.

Patrus Ananias: Claro, ilumina as nossas casas, ilumina os hospitais, postos de saúde, escolas, ilumina as cidades. O poder privado tem que ter muito claro isso, tem o seu espaço importante, mas ele busca o lucro. E tem certos serviços devidos à comunidade que promove o bem comum, que tem que ser feito com múltiplos critérios, não pode ter o ganho como a última referência, a única referência. Que é o sentido, por exemplo, que eu vejo nesse caso. Por isso que eu, como defensor da Cemig, assim… Agora, … Tem que acertar os espaços do Estado, setor privado, e estimular também, o desenvolvimento regional pode cumprir um papel importante nesse sentido, estimular também o cooperativismo, a economia solidária, as iniciativas mais solidárias, até por aí. Tem que ir pensando um pouco nesse caminho para o Brasil, sabe? Porque a história do Brasil, ela avançou muito pouco. Claro que nós temos hoje uma indústria aérea muito bonita em São Paulo, ligada aos militares também, a Força Aérea, Embraer… Mas eu relia agora há pouco tempo, estou relendo algumas obras de referência, e relia um que me marcou muito, um livro do Caio Prado Jr., Formação do Brasil Contemporâneo. Depois eu fui me informar melhor, é consideradamente a obra principal dele, ele é marxista, mas é um primor, ele não faz nenhuma referência. Toda a bibliografia dele é pesquisa. E ele pega o final do século XVIII, o fim do ciclo do ouro, e o início do século XIX, contendo a perspectiva da independência e tudo. E ele mostra que o Brasil era um país totalmente dependente, para exportar. Exportamos o ouro o quanto pode, Portugal levou, levou, depois mesmo já caminhamos para a nossa independência e tudo, sempre a exportação. A cana-de-açúcar voltou, o café começou a entrar, quer dizer, um país voltado para atender demandas internacionais, atender o mercado internacional. Isso continuou até hoje, em grande medida. Exportação de soja, exportação de… ampliou, alargou, tem coisas importantes que foram feitas, tem avanços notáveis, mencionei aqui alguns avanços do próprio Estado, Cemig, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, o setor privado avançou muito em algumas áreas também, mudou, mas o país continua sendo um país dependente. Aquela teoria da dependência que eles fizeram nos anos 60, que envolveu inclusive o Fernando Henrique Cardoso, ela continua presente nesse sentido. Nós não temos um projeto soberano de nação. E tem essa presença incômoda realmente dos Estados Unidos, com o seu poder logo acima da gente aqui.

 

Grupo RDM: Para finalizar, hoje o presidente Lula voltou ao poder em 2022, começou a regovernar pelo terceiro mandato, a partir de 2023, e ele colocou no Ministério do Desenvolvimento Social o Wellington Dias, ex-governador do Piauí, e eu queria uma palavrinha do senhor abordando isso. O trabalho do Welligton Dias, com todo o trabalho que vocês fizeram, que o senhor fez lá no primeiro governo Lula I, Lula II, é mais fácil hoje de reencaixar? Porque houve uma desacomodação da questão social, o Brasil voltou ao mapa do fome, e agora precisa sair de novo do mapa da fome. É um trabalho mais fácil ou mais difícil?

Patrus Ananias: Eu penso que o legado que o desgoverno Bolsonaro nos deixou é trágico. Eles tentaram desmontar o país. Nessa área, por exemplo, da segurança alimentar, que pressupõe a questão da agricultura familiar, produção de alimentos. Nós integramos o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, o Programa Bolsa Família, com as políticas de segurança alimentar, os restaurantes populares, cozinhas comunitárias, bancos de alimentos, políticas de apoio à agricultura familiar, com as políticas públicas da assistência social, os CRAS, o Centro de Referência à Assistência Social, onde muitas vezes ficavam as pessoas que atendiam e encaminhavam os programas relacionados com as demandas, relacionadas com Bolsa Família. Então foi um desmonte completo. Quando nós pegamos o governo em 2003, eu virei ministro em 2004, o Brasil não tinha políticas públicas. Eu costumo dizer que o governo do Fernando Henrique havia aberto algumas picadinhas tímidas. Aquelas políticas que ele começou, não é, de Bolsa Escola, Vale Gás, Vale Alimentação, umas políticas bem modestas, bem localizadas. Então, eu costumo dizer que nós transformamos as picadas modestíssimas do Fernando Henrique em largas avenidas. Integramos e colocamos no plano nacional. Bolsa Família estava presente em todos os municípios do Brasil. E nós avançamos nesse sentido de promover a integração das políticas públicas. Bolsa Família, Assistência Social, Segurança Alimentar, dentro do nosso ministério. E também nós pensamos em avançar na integração com a educação e a saúde.Porque tinham as condicionalidades, não é, que o nacional tinha que ter os cuidados, a família tinha que ter a organização da escola, etc. Os cuidados com a saúde. E a gente, inclusive, conversava muito sobre isso dentro do governo e diretamente com os beneficiários do programa Bolsa Família. Se vocês estão exigindo, se o governo exige que as famílias tenham os cuidados necessários com seus filhos e crianças e jovens na área da educação e com todas as pessoas na área da saúde, o governo também está se comprometendo a garantir para essas pessoas, para essas famílias pobres escolas públicas e postos de saúde , hospitais públicos decentes, dignos, que possam possibilitar que as crianças, que essas pessoas, famílias, tenham atendimento. Então, avançamos muito neste sentido. E eu penso que o Wellington é uma pessoa admirável. Fez um trabalho notável no Piauí. Está lá no MInistério com uma pessoa que é muito querida minha, que é o André Quintão, que me acompanhou muito na prefeitura de Belo Horizonte. Então, eu penso que os nossos princípios e os nossos valores estão muito presentes lá. Até um pouco mais alargados em algumas áreas, não é? Agora enfrentando esse momento mais difícil, que eles não acharam nenhuma picada, não! O que houve realmente foi um desmonte para valer.

 

Grupo RDM: Então, foi muito mais fácil ser sucessor do sociólogo, do que do capitão?

Patrus Ananias: Ah! Eu não tenho dúvidas! Eu tenho uma admiração muito grande pelo intelectual Fernando Henrique Cardoso. Acho que ele fez um governo muito aquém do que se esperava dele, da sua história, da teoria da dependência. Mas não temos comparação. É uma pessoa que passou a faixa para o Lula, com a maior elegância. E quando a esposa dele [dona Ruth] faleceu, o Lula não teve dúvidas. Como presidente da República levou um abraço a ele. Eles tinham uma relação de diálogo. Então, não há termos de comparação, não! Eu acho que o Bolsonaro representa um dos capítulos mais tristes da história do Brasil. Mais triste e mais perigosos. E ele não é uma pessoa sozinha. Ele representa uma força política, que vem ganhando no Brasil e em outros países força. Por isso mesmo que nós da esquerda democrática, temos que começar a agir com mais eficácia para nos contrapor e garantir as conquistas que nós estamos fazendo aqui.

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