Brasil tem anualmente 11 mil partos de meninas menores de 14 anos
Novo estudo mostra que em 40% dos casos exame pré-natal ocorre com atraso e dificulta acesso de vítimas crianças e adolescentes ao aborto legal
O trabalho que levantou o número foi liderado pela epidemiologista Luiza Eunice Sá da Silva, do Centro Internacional de Equidade em Saúde da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Junto com seus coautores, a pesquisadora usou bases de dados oficiais para estimar a taxa de ocorrência do problema.
A realização do estudo, segundo os autores, foi motivada pela criação do projeto de lei 1904 de 2024, que prevê pena de homicídio simples para aborto após 22 semanas de gestação. Na opinião dos médicos, na prática essa proposta impede o direito à interrupção da gravidez para a maioria dessas meninas.
Com mais de um terço das vítimas de estupro de vulnerável incapaz de iniciar o pré-natal dentro do prazo recomendado (a 12ª semana de gestação), na prática poucas delas conseguem cumprir o périplo médico e burocrático necessário para abortar legalmente.
“Demoras no reconhecimento da gestação e na comunicação para a família contribuem para o início tardio do pré-natal e para a decisão de abortar”, escrevem os cientistas. “A proposta de limite do prazo para abortos legais irá atingir principalmente as adolescentes mais vulneráveis em termos socioeconômicos e raciais.”
O grupo autor do estudo, coordenado pelo epidemiologista César Victora, da UFPel, foi concluiu o trabalho em outubro e divugou em versão preliminar do artigo científico resultante em forma pré-print (ainda sem revisão independente) na plataforma SciELO.
Só depois da divulgação do trabalho, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou internamente uma outra matéria legislativa controversa, a Proposta de Emenda Constitucional 164 de 2012, que efetivamente extingue o aborto legal em caso de estupro ou risco de saúde.
— O número de 11 mil meninas que nós estamos vendo no estudo, na verdade, é a ponta do iceberg. Esses são os casos em que elas chegam a dar à luz. Quando elas abortam, ou a criança é natimorta, o dado não entra no Sinasc — afirma Victora.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que restrições parciais ou totais ao aborto vão prejudicar muitas adolescentes pequenas. Em 2023, o Brasil registrou 74.930 estupros, dos quais 56.820 (75%) foram estupros contra vulneráveis. (Os dados do Sinasc no estudo sobre partos vão só até 2022.)
A preocupação dos pesquisadores é que uma nova lei piore o acesso de meninas ao direito de abortar, que já é muito precário. Segundo o Ministério da Saúde, o país realizou 2.687 abortos legais no ano passado, sendo que 140 foram de meninas até 14 anos de idade.
Segundo a psicóloga Daniela Pedroso, que tem 26 anos de experiência em atendimento de meninas estupradas no antigo Hospital Pérola Byington, o estudo da UFPel ilustra o que os profissionais na linha de frente já estão acostumados a ver.
— Quem chega mais tarde para fazer o pré-natal são justamente as crianças e adolescentes, até porque elas demoram mais para entender que estão grávidas — diz Pedroso.
Segundo a psicóloga, as vítimas em situação maior de vulnerabilidade social em famílias mais pobres e com pouca escolaridade são as mais afetadas, algo corroborado pelos dados do estudo da UFPel. O conceito de estupro de vulnerável, muitas vezes, não chega nessas meninas, por não terem recebido educação sexual.
Um dado da UFPel que reflete isso é que um quinto das meninas que sofrem estupro de vulnerável nem sequer começaram o pré-natal até 22 semanas de gravidez, prazo proposto pelo projeto de lei para realização do aborto legal.
Diferenças regionais
A pesquisa de Silva e Victora mostra que o problema do atraso no pré-natal das adolescentes grávidas impacta de forma distinta as diferentes regiões do país.
A região Norte apresenta a maior proporção do problema, atingindo 50% das adolescentes de até quatorze 14 anos. O Sudeste tem a taxa menos grave, mas ainda assim exibe 33% de início tardio.
No recorte de raça/cor, meninas indígenas apresentaram a maior parcela de atraso de pré-natal, que foi de 49% para aquelas com 14 anos ou menos. As adolescentes brancas têm a menor proporção de início tardio (34%). No caso de alguns povos originários, pesa uma tradição cultural na qual muitas mulheres se casam ainda adolescentes.
— O contexto indígena envolve fatores socioculturais moldados por uma gama de padrões ou tipos matrimoniais ancestrais, associados com regras de parentesco de difícil compreensão para não indígenas — diz o epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia. — Essa relação é em geral centrada na figura do patriarca, e a mulher tem pequena margem de decisão. A aprovação desse projeto de lei (1904/2024) pode tornar ainda mais difícil a situação de mulheres indígenas no que tange à dominação sobre seus corpos.
Victora diz esperar que seu estudo contribua com legisladores, que muitas vezes carecem de apoio técnico para criar suas proposições.