Google está no veneno para empurrar a Inteligência Artificial no jornalismo, diz jornalista
*Sérgio Spagnuolo
Uma das maiores preocupações de quem se importa de verdade com a qualidade do jornalismo é que trovas de conteúdos gerados por inteligência artificial inundem o ecossistema de notícias. Não apenas em sites obscuros por aí, como tem acontecido a torto e a direito, mas efetivamente em publicações que tradicionalmente estejam no centro da composição do noticiário.
Já há sinais claros de que isso tem acontecido, como foi o caso da CNET, MSN e Abril, entre outros. Se esses casos pareciam pontuais, agora eles parecem orquestrados, e um dos grandes maestros é uma das empresas de maior poder econômico do mundo.
O Google, após ter chegado meio atrasado pra festa da inteligência artificial generativa inaugurada pela OpenAI e seu ChatGPT, está pagando veículos de jornalismo para que usem sua suíte de ferramentas, a fim de publicar conteúdo gerado inteiramente por IA, em troca de fornecer feedback e analytics.
Segundo o site Adweek, organizações de mídia estão recebendo dezenas de milhares de dólares para produzir um volume fixo de conteúdos de IA durante 12 meses. Em poucas palavras, os veículos ganham para produzir conteúdo de graça com as ferramentas do Google (um sonho para quem produz clickbait e spam pra vender Google Ads).
Não dá pra saber quem está a bordo desse programa, nem se chegou ao Brasil.
O potencial de abrir as portas do inferno é grande.
Primeiro pelo óbvio potencial de tirar empregos de jornalistas. Mesmo que aceitemos que IA vai eventualmente (e com razão) substituir tarefas repetitivas, braçais, entediantes e desnecessariamente feitas por humanos, é fato também que ela já está avançando para o domínio da criação de conteúdo complexo (que alguns querem chamar de “jornalismo”) – um campo basicamente humano, o que coloca o emprego de muitos jornalistas em risco.
Segundo porque isso cria um desequilíbrio econômico também no ecossistema de jornalismo de nicho e de organizações menores, favorecendo (com dinheiro, visibilidade, preferência de algoritmos etc.) empresas que possuem a grande escala que Google gosta (pra vender anúncios, claro) – inclusive com a ajuda de clickbaits e conteúdo de péssima qualidade. Quem não trabalha vendendo anúncio e entregando volume de views talvez nem entre na lista.
Terceiro pelo potencial de violações de direitos autorais, spam e, pior, plágio que isso pode gerar, considerando que esse conteúdo gerado por IA pode ter como fonte jornalismo produzido por concorrentes. Claro, o Google deve ter alguns métodos de controle pra isso, mas quem vai ficar fiscalizando gotinha de chuva em tempestade?
Por fim, mas não menos importante, há o claro e já exaustivamente alertado risco de simplesmente a IA escrever um monte de asneiras, prejudicando ainda mais marcas jornalísticas e o ecossistema como um todo.
O Google jura que não tem nada a ver. Como disse uma representante à Adweek:
“A ferramenta experimental está sendo projetada de forma responsável para ajudar pequenas publicações locais a produzir jornalismo de alta qualidade usando conteúdo factual de fontes de dados públicos—como informações públicas do governo local ou autoridades de saúde. Essas ferramentas não pretendem, e não podem, substituir o papel essencial que os jornalistas têm na reportagem, criação e verificação de fatos de seus artigos.”
Mas não dá pra negar que conteúdo 100% gerado por IA está sendo empurrado goela abaixo de publicações, que aceitam trocar dinheiro pra fazer esses testes e entulhar o ecossistema de jornalismo com material gerado por IA.
Eu sou fascinado pelas novas ferramentas generativas e as utilizo no meu dia a dia e no do Núcleo (dentro das nossas políticas de uso responsável). E pode ser que eu esteja errado e no fim das contas isso seja melhor pra todo mundo. Mas é difícil aceitar passivamente que o jornalismo vai ser inundado por esse tsunami de conteúdo artificial, assim como já está acontecendo em escala em outros lugares da internet.
*Jornalista e editor do Núcleo. Criador da agência de tecnologia Volt Data Lab. Atuou pela Reuters e colaborou com vários veículos nacionais e internacionais, além de ter sido Knight Fellow no ICFJ.
Fonte: Portal Núcleo